quinta-feira, 17 de abril de 2008

VOZES DO SILÊNCIO: O PARADIGMA DA CRUELDADE – LIMITES ÉTICOS DA EXPERIMENTAÇÃO ANIMAL –
LAERTE FERNANDO LEVAI
Promotor de Justiça em São José dos Campos/SP
1. INTRODUÇÃO
A experimentação animal, definida como toda e qualquer prática que utiliza animais para fins didáticos ou de pesquisa, decorre de um erro metodológico que a considera o único meio para se obter conhecimento científico. Abrange a vivissecção, que é um procedimento cirúrgico realizado em animal vivo.


No Brasil, a exemplo do que ocorre em quase todo o mundo, todo dia um incontável número de animais perde a vida em experimentos cruéis, submetidos a testes cirúrgicos, toxicológicos, comportamentais, neurológicos, oculares, cutâneos, etc., sem que haja limites éticos - ou mesmo relevância científica - em tais atividades. Macabros registros de experiências com animais praticadas nos centros de pesquisa, nos laboratórios, nas salas de aula, nas fazendas industriais ou mesmo na clandestinidade, revelam os ilimitados graus da estupidez humana. Sob a justificativa de buscar o progresso da ciência, o pesquisador prende, fere, quebra, escalpela, penetra, queima, secciona, mutila e mata. Nas suas mãos o animal vítima torna-se apenas a coisa, a matéria orgânica, enfim, a máquina-viva.
Em termos legais, a atividade vivisseccionista esteve durante muito tempo respaldada unicamente na Lei nº 6.638/79. Com o advento da Lei nº 9.605/98, na qual o legislador inseriu um dispositivo específico sobre crueldade para com animais, sua prática passou a ser considerada delituosa caso não adotados os métodos substitutivos existentes. É que o artigo 32 § 1o do diploma jurídico ambiental incrimina “quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”, cominando aos infratores pena de três meses a um ano de detenção, além de multa, sem prejuízo da respectiva sanção pecuniária administrativa. A reprimenda é aumentada em um sexto a um terço “se ocorre a morte do animal” (par. 2º).
O tipo penal descrito no artigo 32 caput da Lei nº 9.605/98 é de conteúdo misto ou variado, porque se perfaz mediante ações diversas: abusar, maltratar, ferir ou mutilar. Todas essas modalidades agressivas podem ser resumidas em uma única expressão, crueldade, termo mais genérico e que reúne em si aquelas hipóteses, podendo exprimir quaisquer ações relacionadas à violência, à insensibilidade ou ao sadismo em detrimento dos animais. Considerando a existência, na atualidade, de uma vasta gama de recursos hábeis a livrar os animais de seus padecimentos na mesa do vivissector, faz-se necessária uma mudança de paradigma na mentalidade dos pesquisadores, uma pequena revolução interior que lhes permita conciliar a ética à atividade científica. As restrições à atividade experimental não se limitam aos animais oriundos de biotérios, mas também àqueles apanhados nos Centros de Controle de Zoonoses, após sua captura nas ruas, situação essa que lhes acarreta ainda mais padecimento.
O caminho para o abolicionismo das cobaias de laboratório, portanto, foi indicado pelo artigo 32 § 1º da Lei nº 9.605/98: adoção de métodos alternativos à experimentação animal. Este dispositivo ajusta-se perfeitamente ao mandamento supremo expresso no
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artigo 225, § 1º, VII, da Constituição Federal, em que o legislador houve por bem vedar as práticas que submetam animais a agressões e maus tratos: “Incumbe ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade”.
É preciso, todavia, romper o silêncio que impera no campo da experimentação animal, enfrentando os tabus existentes, desmistificando crenças, questionando verdades preconcebidas, ampliando nossa perspectiva ética e projetando a noção do justo para além da espécie dominante, tudo isso para, enfim, ouvir as vozes dos animais subjugados pelo homem. Como bem escreveu o professor Thales Tréz, no prefácio ao livro “Alternativas ao uso de animais vivos na educação”, de autoria do biólogo Sérgio Greif, a vivissecção faz com que os próprios alunos se tornem vítimas indiretas de seu equivocado método de pesquisa: “O uso de animais expõe o estudante muitas vezes a contradições, como o de matar para salvar, ou desrespeitar para respeitar. Segundo ele, “a prática do uso de animais seja em que área for, é insustentável do ponto de vista econômico, ecológico, ético, pedagógico e principalmente, incompatível com uma postura de respeito e cuidado para com a vida. Tudo leva a crer que a plena abolição da metodologia científica oficial, tão cruel quanto injusta, seja apenas uma questão de tempo.
2. O ALTAR CIENTIFICISTA
Foi a partir do racionalismo de René Descartes (1596-1650) que o uso de animais para fins experimentais tornou-se método padrão na medicina. Tal filósofo justificava a exploração sistemática dos animais, equiparando-os a autômatos ou a máquinas destituídas de sentimentos, incapazes de experimentar sensações de dor e de prazer. Ficaram famosas, a propósito, as vivissecções de animais realizadas por seus seguidores na Escola de Port-Royal, durante as quais os ganidos dos cães seccionados vivos eram interpretados como um simples ranger de uma máquina. Foi o auge da teoria do animal-machine.
Em meados do século XIX o fisiologista francês Claude Bernard (1813-1878) lançou as bases da moderna experimentação animal com a obra “Introdução à medicina experimental”, considerada por muitos como sendo a ‘bíblia dos vivissectores’. A partir daí a atividade experimental em animais ganhou novo impulso, sem qualquer preocupação ética por parte dos cientistas. Cães, gatos, macacos, ratos, coelhos, dentre outras tantas espécies transformadas em meras “cobaias” em experiências, passaram a sofrer refinada tortura nas mesas cirúrgicas, sob a justificativa de seu ‘sacrifício’ reverter em prol da ciência.
Herdeiros de Descartes e de Claude Bernard, os pesquisadores contemporâneos ainda estão imersos no antigo paradigma reafirmador das ideologias cientificista e tecnicista. Embora significativa parcela deles demonstre certo desconforto em admitir seu envolvimento com o método científico-experimental, justificam-no alegando que a vivissecção é um mal necessário. A respeito desse assunto o professor João Epifânio Regis Lima propôs séria reflexão sobre a metodologia oficial que legitima a tortura em animais. Em brilhante tese de mestrado apresentada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, em 1995, sob o título “Vozes do Silêncio – Cultura Científica: Ideologia e alienação no discurso sobre vivissecção”, ele teve o mérito de questionar a postura científica dominante, na qual o capitalismo, o cientifismo e o tecnicismo constituem o tripé
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ideológico que sustenta as bases do sistema social vigente. Algumas de suas observações, nesse pioneiro trabalho crítico, merecem ser transcritas:
“Defender a vivissecção como técnca única (ou unicamente confiável) de exploração biológica a nível orgânico e médito é partir do princípio (positivista) de que apenas os fatos concretos e diretamente observáveis são fonte seguro de conhecimento”.
“Além de considerarem a ciência como a forma por excelência de adquirir conhecimento sobre o mundo, adota-se uma maneira particular de resolver problemas específicos a uma determinada área do conhecimento como sendo única, caracterizando a imersão em um paradigma, o qual, estando acima de qualquer suspeita, não é questionado”.
“A vivissecção, ou os pressupostos e princípios de que ela parte, acabaria desempenhando papel importante como afirmadora de uma ordem cultural de uma hegemonia, na medida em que define quem mata e quem morre, quem é sacrificável e quem não o é”.
“Mal necessário significando ‘não gosto, mas não há saída, não tenho saída’ revela um acuamento, um constrangimento de possibilidades de ação”.
Daí porque a instituição científica e/ou universitária responsável pela experimentação acaba se valendo do princípio da autoridade para impor sua metodologia. Isso faz com que as pessoas nela inseridas – sejam funcionários, sejam estudantes – não ousem questionar o sistema ali adotado, até mesmo por temor reverencial. Dever-se-ia, nesses casos, facultar a elas a opção pela escusa de consciência, caso não queiram participar de atividades vivisseccionistas, porque ninguém pode ser obrigado a fazer aquilo que despespeite seus princípios morais. O fundamento jurídico para o reconhecimento deste direito, aliás, encontra-se na própria Constituição Federal, cujo artigo 5º, III, é expresso: “Ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa fixada em lei”.
Aos olhos do pesquisador, entretanto, os animais são criaturas eticamente neutras, coisas, produtos, matrizes ou peças de reposição, tratados como meros objetos descartáveis. Existe um profundo silêncio sobre esse assunto, no qual a vivissecção funciona como instrumento de reiteração de uma ordem cultural. Em meio a um contexto impositivo, não há espaço para idéias novas, tampouco para assumir atitudes mais compassivas perante os animais cobaias. Uma vez instaurado o conflito, surge o Ministério Público como órgão de defesa e de transformação da sociedade, cabendo-lhe agir em socorro também das criaturas injustamente oprimidas pelo homem.
3. ERRO METODOLÓGICO
As indústrias (cosmética e farmacêutica), os centros de pesquisa e as faculdades da área de biomédicas são as grandes vilãs que sacramentam o destino dos animais utilizados pelos cientistas. Vale lembrar que a cada ano centenas de produtos médicos previamente testados nos bichos acabam retirados das prateleiras, por absoluta ineficácia ao que se propõem, substituindo-se-lhes por outra grande quantidade de drogas, as quais, depois de se mostrarem inócuas para os animais, revelam-se tóxicas, ou até mesmo mortais para o homem. Isso se deve ao fato de que homens e animais reagem de forma diversa às substâncias: a aspirina, que nos serve como analgésico, é capaz de matar gatos; a beladona,
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inofensiva para coelhos e cabras, torna-se fatal ao homem; a morfina, que nos acalma, causa excitação doentia em cães e gatos; a salsa mata o papagaio e as amêndoas são tóxicas para os cães, servindo ambas, porém, à alimentação humana. Tais exemplos servem para comprovar que homens e animais, apesar das semelhanças morfológicas, possuem uma realidade orgânica bem diversa.
Nossa triste fauna de laboratório - ratos (utilizados geralmente para se investigar o sistema imunológico), coelhos (submetidos a testes cutâneos e oculares, além de outros atrozes procedimentos), gatos (que servem sobretudo às experiências cerebrais), cães (normalmente destinados ao treinamento de cirurgias), rãs (usadas para testes de reação muscular e, principalmente, na observação didática escolar), macacos (para análises comportamentais, dentre outras coisas), porcos (cuja pele freqüentemente serve de modelo para o estudo da cicatrização), cavalos (muito utilizados no campo da sorologia), pombos e peixes (que se destinam, em regra, aos estudos toxicológicos), etc. -, transforma-se em cobaia nas mãos do pesquisador, servindo como modelo experimental do homem. Não há como afirmar, todavia, que substâncias testadas em animais garantem o mesmo efeito em seres humanos. Às vezes a reação é imprevisível ou, em certos casos, completamente oposta.
A tragédia da talidomida, nos anos 60, demonstrou o malefício que pode advir da falsa segurança que a experimentação animal atribui a uma substância: 10.000 crianças nasceram com deformações congênitas nos membros, depois que suas mães – durante a gravidez - ingeriram tranqüilizantes feitos com esse produto, os quais tinham sido ministrados, sem problemas, em ratos durante três anos. Sabe-se hoje, também, que um terço dos doentes renais, que necessitam de diálise, destruíram sua função hepática tomando analgésicos tidos como seguros porque testados em animais. Os CFC (clorofluorcarbonetos), que foram considerados confiáveis após terem sido testados em animais, causaram o perigoso buraco na camada de ozônio sobre a Antártida.
Além de não ser um método eficaz, a experimentação animal ainda provoca angústia e dor incomensuráveis aos animais utilizados. Dentre os testes cruentos largamente realizados, merecem lembrança o DL 50 (conhecido como “dose letal 50%”, consiste na inoculação forçada de determinada substância no organismo do animal com o propósito de avaliar seus níveis de toxicidade, podendo o produto ser liberado ao mercado consumidor caso metade dos animais sobreviva ao efeito da droga), o Draize Eye Test (experiência de irritação ocular que visa a testar fórmulas de xampus, cosméticos ou produtos de limpeza nos olhos de coelhos presos a aparelhos de contenção), além de outros procedimentos experimentais igualmente hostis.
Mesmo sob efeito de anestesia, os animais usados como cobaias sofrem muito na mesa do pesquisador. O período pós-operatório, em que o animal padece da dor da experiência, nem sempre é levado em consideração Isso para não falar do período que antecede o teste, em que os animais também sofrem por causa das condições em que são mantidos. Trancafiados em gaiolas, em condições estranhas à espécie, amedrontados e privados de qualquer contato social, em espaços exíguos e às vezes insalubres, acabam se tornando meros instrumentos para o estudo das doenças físicas e mentais do homem.
Basta a simples observação do comportamento animal, independentemente dos aspectos anatômicos e neuro-fisiológicos peculiares a cada espécie, para concluir que o mecanismo da dor, ao contrário da perniciosa tese cartesiana do século XVII, é o mesmo em todos os mamíferos. Idéias equivocadas relacionando as ações dos animais unicamente aos instintos ou preceitos jurídicos que lhes privaram da individualidade, entretanto, 4
acabaram sedimentando uma mentalidade que insiste em proclamar a hegemonia humana sobre todas as criaturas.
Para superar essa visão predominantemente antropocêntrica é preciso transpor a barreira comceitual que, segundo o professor de filosofia Bernard E. Rollin, da Universidade do Colorado/EUA, dificulta o reconhecimento moral em favor dos animais: “É evidente que esta barreira surge do fato de que a sociedade parece estar relutante em abandonar os benefícios que emergem das principais áreas de uso animal”.
Possui a literatura médica, ao longo da história, exemplos terríveis do que já ocorreu e do que ainda ocorre, pelo mundo, no campo da experimentação animal. Cenas chocantes de animais mutilados, escalpelados, destroçados, queimados, perfurados, costurados, ligados a eletrodos, submetidos a testes toxicológicos e psicológicos, dentre outras tantas registradas em dolorosas descrições doutrinárias e imagens fotográficas, ferem nossos olhos e desafiam nossa consciência.
O Ministério Público, a quem toca a tutela jurídica da fauna e o cumprimento das leis, não deve se omitir diante dessa cruel realidade. Atuando na condição de substituto processual dos animais (artigo 3º, par. 3º do Decreto nº 24.645/34) e curador do meio ambiente (artigo 129, III, da Constituição Federal), o promotor de justiça pode agir preventivamente, recomendando às escolas e aos institutos de pesquisa – de modo oficioso – a necessidade da substituição do uso animal. Pode, também, propor a celebração de um Termo de Ajustamento de Conduta, com base no princípio da precaução. Se nada disso surtir efeito, poderá o Parquet valer-se do poderoso instrumento da ação civil pública, a fim de compelir o pesquisador e/ou a instituição requerida ao efetivo cumprimento da lei.
4. MÉTODOS ALTERNATIVOS
Verifica-se que a norma jurídica ambiental do artigo 32 par. 1º da Lei nº 9.605/98 reconhece a crueldade implícita na atividade experimental sobre animais, tanto que se adiantou em indicar outros caminhos para impedir a inflição de sofrimentos. Se hoje a realização de experimentos está condicionada à ausência de métodos alternativos, isso significa – na lúcida visão dos biólogos Sérgio Greif e Thales Tréz (“A verdadeira face da experimentação animal”, p.137) – que, ao menos no plano teórico, a atividade vivisseccionista contraria a lei. Afinal, técnicas alternativas ao uso do animal em laboratórios já existem dentro e fora do país.
A busca de um ideal aparentemente utópico, o de abolir toda e qualquer forma de experimentação animal, tanto na indústria como nas escolas, não permite o comodismo nem o preconceito. Imprescindível que o cientista saia da inércia acadêmica para trazer às universidades e aos centros de pesquisa alguns dos métodos alternativos já disponíveis e que poderiam perfeitamente ser adotados no Brasil, dispensando o uso de animais.
Há que se relacionar aqui, a título exemplificativo, alguns dos mais conhecidos RECURSOS ALTERNATIVOS que se ajustam ao propósito do legislador ambiental, a saber:

Sistemas biológicos ‘in vitro’ (cultura de células, de tecidos e de órgãos passíveis de utilização em genética, microbiologia, bioquímica, imunologia, farmacologia, radiação, toxicologia, produção de vacinas, pesquisas sobre vírus e sobre câncer);

Cromatografia e espectrometria de massa (técnica que permite a identificação de compostos químicos e sua possível atuação no organismo, de modo não-invasivo);
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Farmacologia e mecânica quânticas (avaliam o metabolismo das drogas no corpo);

Estudos epidemiológicos (permitem desenvolver a medicina preventiva com base em dados comparativos e na própria observação do processo das doenças);

Estudos clínicos (análise estatística da incidência de moléstias em populações diversas);

Necrópsias e biópsias (métodos que permitem mostrar a ação das doenças no organismo humano);

Simulações computadorizadas (sistemas virtuais que podem ser usados no ensino das ciências biomédicas, substituindo o animal);

Modelos matemáticos (traduzem analiticamente os processos que ocorrem nos organismos vivos);

Culturas de bactérias e protozoários (alternativas para testes cancerígenos e preparo de antibióticos);

Uso da placenta e do cordão umbilical (para treinamento de técnica cirúrgica e testes toxicológicos);

Membrana corialantóide (teste CAME, que utiliza a membrana dos ovos de galinha para avaliar a toxicidade de determinada substância); etc.
Inúmeros países considerados de primeiro mundo já aboliram o uso de animais em pesquisas didático-científicas, principalmente nas escolas, como se pode constatar das nações que integram a Comunidade Européia, o Canadá e a Austrália. Nos EUA, a propósito, mais de 70% das faculdades de Medicina não utilizam animais vivos, enquanto que na Alemanha esse índice é bem maior. Várias diretrizes da União Européia foram firmadas com o propósito de abolir os testes com animais, dentre eles o terrível DL 50.
Assim, em oposição à doutrina científica oficial que fez da fisiologia um dos intocáveis mitos da ciência médica e influenciou seguidas gerações de pesquisadores, a corrente antivivissecionista vem ganhando força. Há que se registrar, ao longo dos tempos, vozes ilustres que se levantaram contra o massacre de animais na medicina, dentre elas as de Voltaire, Gandhi, Donald Griffin, Charles Bell, Alfred Russel Wallace, Pietro Croce, Hans Ruesch, Milly Shär-Manzoli, Carlos Brandt, George Bernard Shaw, Jane Goodall, Thomas Regan, Henry Spira, Mark Twain, Victor Hugo, Leon Tolstói e Richard Wagner.
Apenas nos últimos anos, no Brasil, várias escolas superiores vêm se empenhando na busca de alternativas à experimentação animal, como a Universidade de São Paulo (a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia adota o método de Laskowski, que consiste no treinamento de técnica cirúrgica em animais que tiveram morte natural), a Universidade Federal do Estado de São Paulo (que usa um rato de PVC nas aulas de microcirurgia), a Universidade de Brasília (onde o programa de farmacologia básica do sistema nervoso autônomo é feito por simulação computadorizada), afora aquelas cujo departamento de patologia realiza pesquisas apenas com o cultivo de células vivas.
Culturas de tecidos, provenientes de biópsias, cordões umbilicais ou placentas descartadas, dispensam o uso de animais. Vacinas também podem ser fabricadas a partir da cultura de células do próprio homem, sem a necessidade das técnicas invasivas experimentais em cavalos, envolvendo a sorologia. Isso sem esquecer dos modernos processos de análise genômica e sistemas biológicos in vitro, que, se realizados com ética, tornam absolutamente desnecessárias antigas metodologias relacionadas à vivissecção, em face das alternativas hoje existentes para a obtenção do conhecimento científico.
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5. BREVE REFLEXÃO ÉTICA
Para amenizar o impacto negativo da experimentação animal, diversos setores de pesquisa – incluídos os cursos de graduação em biomédicas – passaram a seguir as recomendações do chamado princípio dos 3R’s (replacement, reduction e refinement), conceito esse divulgado por W.M.S. Russel e R.L. Burch no livro “The Principle of Humane Experimental Technique” (1959), em que se propõe a substituição, a redução e o refinamento da pesquisa com animais. Esse sistema, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, contém um discurso engajado que, servindo como “escudo protetor”, ajusta-se como luva aos propósitos dos experimentadores.
Conforme observam Greif & Tréz, “qualificando a vivissecção como mal necessário, o movimento dos 3R’s não a detém, ao contrário exalta e promove” (obra citada, p. 125). Estratégia semelhante também foi utilizada pelos pesquisadores em relação à Lei 6.638/79, que, a pretexto de “estabelecer normas para a prática didático-científica da vvissecção de animais”, não consegue esconder seus verdadeiros propósitos: art. 1º) “Fica permitida, em todo o território nacional, a vivissecção de animais, nos termos desta Lei”.
Não bastasse isso tudo, o universo científico insiste em legitimar sua cruel metodologia por intermédio dos protocolos internos e das pretensas Comissões de Ética. A própria normatização do COBEA – Colégio Brasileiro de Experimentação Animal – parte de uma premissa tendenciosa, que informa ser imprescindível o uso de animais em pesquisas. Nessas condições, o controle e a fiscalização da atividade experimental acabam se tornando, em termos práticos, medidas dissimuladas e inócuas. Limites éticos à experimentação animal, em meio a tal contexto, simplesmente inexistem na prática.
Como se sabe, tanto no campo didático quanto no científico, inúmeras experiências dolorosas são exaustivamente repetidas nos animais a fim de demonstrar teses cujos resultados são notórios. Convém dizer que muitos desses estudos, afora sua inutilidade, revelam uma extrema indiferença dos vivisseccionistas pelo martírio dos animais utilizados, os quais, via de regra, acabam sendo mortos após uma considerável inflição de medo, de dor e de sofrimento.
Também não se pode dizer que a aplicação de sedação ou anestesia nos animais autoriza o experimento, como se isso afastasse sua natureza dolorosa ou cruel. O professor David DeGrazia, que leciona filosofia na Universidade George Washington, EUA, fez interessantes observações a respeito. Segundo ele, mesmo que se diga que não há sofrimento para um animal devidamente anestesiado que é submetido à experimentação, não podemos nos esquecer de que, se no fim ele for sacrificado, houve um enorme dano para esse ser, uma vez que aquilo que ele tem de mais importante lhe foi suprimido: “A morte, assim, surge como um dano instrumental porque priva a criatura das preciosas oportunidades que a vida ininterrupta lhe poderia propiciar” (in Animal Rights, p. 108. Tradução de Vânia Rall Daró).
Como já comprovado pela medicina, a maioria das doenças que nos acomete é conseqüência de hábitos desvirtuados e do modo pouco sadio de viver. Disfunções cardíacas e câncer, principais causas de mortalidade humana no mundo, decorrem quase sempre da ingestão de substâncias tóxicas no organismo, da má alimentação, do sedentarismo e do estresse generalizado. Algo que poderia ser evitado se as pessoas seguissem à risca um antigo e sábio ditado, que diz: melhor prevenir do que remediar. Não há sentido, portanto, em utilizar animais para o estudo das moléstias humanas, haja vista as
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peculiariedades anatômicas, fisiológicas e metabólicas de cada espécie. Trata-se de um grave erro acreditar que uma descoberta biomédica somente possa ser creditada pela medicina oficial depois de o experimento também ter tido resultado positivo sobre os animais.
No momento em que se discute como substituir a experimentação animal, seria um retrocesso incentivar atividades que submetem animais a procedimentos hostis. A própria clonagem, como se sabe, é uma prática repleta de falhas e riscos, capaz de produzir aberrações e submeter as cobaias a atos cruéis. Isso sem falar nas conseqüências biológicas que costumam atingir um organismo genetivamente modificado: envelhecimento precoce, disfunções cardíacas e imunológicas, alto índice de abortos, disseminação de doenças, entre outras. Os seres que nascem aparentemente perfeitos não possuem garantia alguma de que terão uma vida normal, pois poderão ser vítimas de anomalias cromossômicas, como aconteceu com a ovelha Dolly.
Até o suposto propósito conservacionista, no caso de animais ameaçados de extinção, não passa de um pretexto para justificar a clonagem, que fere os princípios morais e éticos mais elementares. Na maioria das vezes, vale dizer, o próprio homem é o responsável pela extinção das outras espécies. Longe de haver uma preocupação com o bem-estar animal, a finalidade de clonar animais é sempre a sua exploração.
Nem mesmo o bem-estar humano acaba sendo levado em consideração. É que a indústria farmacêutica, aproveitando-se do temor que o homem sente da doença e da morte, lucra muito com os novos medicamentos e panacéias que lança anualmente no mercado. Ninguém comenta nada a respeito dos efeitos teratogênicos (que causam malformações) e iatrogênicos (que podem levar à morte) de muitas drogas que são vendidas e retiradas furtivamente das prateleiras das farmácias. Em meio a esse cenário sombrio, os animais tornam-se as principais vítimas da insensatez humana.
Cabe à bioética a relevante missão de sopesar na balança da consciência os dilemas morais relacionados à vivissecção, sem deixar de ouvir o sufocado lamento dos oprimidos. Afinal, como dizia o médico antivivisseccionista Stefano Cagno, “é importante entender que uma ciência que adota o princípio de que ‘os fins justificam os meios’ é uma ciência doente, para a qual qualquer atrocidade, até contra o homem, poderá ser legitimada (...)” (Opúsculo do Comitato Scientifico Antivivisezionista, p. 3, tradução de Vânia Rall Daró).
Longe de pretender cercear o progresso da ciência, mas permitir que a pesquisa médica seja permeada pela moral e pela ética, é de rigor uma urgente mobilização social para cessar o massacre tão cruel quanto inútil, que recai sobre os animais de laboratório. O tema assume maior relavância em função do incontrolado avanço da biotecnologia e da engenharia genética, em que as experiências tornam-se cada vez mais freqüentes e sofisticadas. Insistir na experimentação animal é perseverar em um erro metodológico, cujo maior prejudicado será sempre o homem.
6. CONCLUSÕES ARTICULADAS
6.1. A experimentação animal, da forma como vem sendo realizada na maioria dos laboratórios, centros de pesquisa ou estabelecimentos de ensino, é uma atividade imersa na ideologia científica dominante, na qual os animais – tidos como objetos de estudo ou peças descartáveis - são tratados como se fossem criaturas eticamente neutras.
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6.2. Há que se garantir a possibilidade de o estudante e/ou funcionário que eventualmente lide com experimentação animal invocar, em seu próprio favor, a opção pela escusa de consciência, com fundamento no artigo 5º, VIII, da Constituição Federal, porque ninguém pode ser obrigado a fazer aquilo que desrespeite seus princípios morais.
6.3 A lei da vivissecção (Lei federal nº 6.638/79) deve hoje ser interpretada de acordo com o critério objetivo trazido pela Lei dos Crimes Ambientais (Lei federal nº 9.605/98), cujo artigo 32 par. 1º condiciona o uso de animais para fins científicos ou didáticos à inexistência de recursos alternativos, aliás, já conhecidos e disponíveis no Brasil.
6.4. Caso o pesquisador não recorra aos métodos alternativos existentes, a experimentação animal por ele perfazida poderá configurar crime ambiental, cabendo ao promotor de justiça as respectivas medidas penais, sem prejuízo de buscar – pelas vias administrativas ou cíveis – meios hábeis a estabelecer limites éticos na atividade científica.
6.5. O Ministério Público, a quem compete exercer - por força de lei – a tutela jurídica da fauna, deve enfrentar as questões relacionadas ao uso experimental de animais, podendo expedir recomendações, firmar TAC acautelatório ou, se houver resistência à substituição preconizada no art. 32 par. 1º da Lei 9.605/98, ingressar com ação civil pública.
(tese apresentada e aprovada no 9º Congresso Brasileiro de Direito Ambiental, realizado em junho de 2004, em São Paulo, pelo Instituto O Direito por Um Planeta Verde, sobre o tema Fauna, Políticas Públicas e Instrumentos Legais)
Fonte:
IAA - Instituto Abolicionista Animal

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