terça-feira, 25 de março de 2008

Caça: Celeuma Brasileiro

Caça:
Celeuma Brasileiro
Alzira Papadimacopoulos Nogueira
escolha deste tema específico, levando-se em conta a gama de assuntos abordados pela legislação ambiental brasileira, decorre da necessidade de se demonstrar com clareza as nuances encontradas nos textos legais vigentes em nosso País, que regem a competência concorrente para legislar sobre fauna e caça. No entanto, mister se faz ter noção do que significa a terminologia fauna e os processos que configuram a caça, bem como da situação em que se encontram os animais que pertencem à nossa fauna silvestre e as tentativas para protegê-los.
Seguindo essa orientação,


conceituamos fauna como o conjunto dos animais próprios de uma região e animais, aqueles que se dividem em invertebrados, mamíferos, aves, répteis e anfíbios. A fauna, por sua vez, se divide em silvestre – aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias, aquáticas ou terrestres, que tenham parte do ciclo biológico ocorrendo naturalmente dentro dos limites do território brasileiro (tais como: jacaré, capivara, tucano etc.); doméstica – aqueles não pertencentes à fauna nativa e exótica que, tradicionalmente, convivem com e estão adaptados às sociedades humanas, por meio de um processo histórico, não possuindo condições de sobreviver naturalmente sem o auxílio humano (tais como: cães, gatos etc.); e exótica – aqueles pertencentes às espécies ou subespécies, cuja distribuição geográfica natural não inclui o território brasileiro e aqueles pertencentes às espécies ou subespécies introduzidas pelo homem, inclusive as domésticas em estado feral. No caso dos peixes, esses se enquadram na fauna ictiológica, que deriva da água e que, por sua vez, pode ser silvestre ou exótica, dependendo da bacia hidrográfica do qual faz parte.
Quanto à caça, por ser uma atividade faunística, engloba alguns atos que a tipificam, tais como: perseguição aos animais com arma de fogo e cães, assim como a utilização de armadilhas para a captura dos mesmos, deixando de acrescentar a perseguição pura e simples, como a apanha e finalmente a morte do animal, que ao meu ver, contexto dessa supramencionada atividade, apesar de a Lei no 6.905/98, em seu art. 29, ter separado cada ação em matar, perseguir, apanhar e caçar.
Temos no Brasil, como primeira tentativa legislativa para se proteger os animais da crueldade e dos maus-tratos, as Ordenações Manoelinas, em 1521, com a proibição da caça a perdizes, lebres e coelhos, com fios, rede ou quaisquer outros instrumentos que causassem sofrimento na morte dos animais. A pena prevista para o infrator era o pagamento de “mil réis” e a perda dos instrumentos e dos cães utilizados na caçada.
Após quatrocentos e treze anos, mais precisamente em 10 de julho de 1934, deu-se grande passo em defesa dos animais, através do Decreto-Lei n.º 24.645, que estabelece medidas de proteção, passando-os à tutela do Estado e impondo pena restritiva de liberdade a quem lhes impingisse maus-tratos. Esse Decreto-Lei trata dos animais de modo geral, mesmo que para alguns juristas, o instrumento em tela abranja tão-somente os animais domésticos, pois, o propósito era o de se coibir a violência, diferente do texto legal a posteriori sancionado, que trouxe ao ordenamento jurídico a forma de proteção dos animais silvestres – a Lei no 5.197, de 3 de janeiro de 1967, apesar de ser, na verdade, um verdadeiro código de caça, por estabelecer os critérios para essa atividade, com alguns avanços, como por exemplo, tirou-se do caçador o direito de propriedade dos animais silvestres (art.1°), conforme previa o art. 595 do Código Civil, passando ao Estado. Foi proibida a caça profissional (art. 3°) e disciplinada a atividade dos cientistas (art. 14). Algumas condutas foram elevadas à categoria de crimes (art. 27), a exemplo da caça profissional (art. 3°), com a pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Este texto legal foi alterado e completado pela Lei no 7.653, de 12 de fevereiro de 1988, que determina ao Ministério Público Federal propor a ação penal, uma vez que o bem juridicamente tutelado é de propriedade da União, que figura como sujeito passivo.
Recentemente, recebeu outra modificação de cunho mais brando, pela Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, que é, na verdade, uma cópia melhorada do art. 1° da Lei no 5.197/67, no que diz respeito às espécimes da fauna silvestre, vislumbrando maior avanço quando trata da prática de atos como o abuso e os maus-tratos a quaisquer tipos de animais, sejam eles silvestres, domésticos ou exóticos, criando, ainda, a figura dos animais domesticados e nativos. Os primeiros subentendendo-se como aqueles selvagens em convívio com os humanos e os últimos, aqueles que nasceram no território brasileiro, havendo neste sentido uma confusão de terminologias, pois temos os silvestres como nativos e os domesticados como silvestres, pois estes não perdem jamais essa qualidade, constituindo crime tê-los sob guarda.
Das leis para a prática, o caminho a se percorrer é longo e árduo, mesmo porque a nossa legislação ambiental é uma das mais avançadas do mundo. No entanto, a nossa realidade, infelizmente, não a acompanhou de forma alguma, tendo em vista a disparidade do poderio econômico, tornando os recursos naturais, muitas vezes, a salvação de muitas famílias brasileiras que não têm o que comer. Concorre também, para o distanciamento das leis em relação a realidade, escassez de fiscalização para que aquelas sejam cumpridas, devido aos quadros de funcionários públicos, tanto da esfera federal como da estadual, que atuam como fiscais, constituírem a minoria dentro de estruturas governamentais puramente administrativas.
Diante dessa desigualdade de forças, o Brasil está entre os principais países do mundo que comercializam e exportam espécies da fauna e flora silvestres de forma ilegal. Segundo um levantamento realizado pela organização não governamental denominada Fundo Mundial para a Natureza - WWF, “especialistas das agências governamentais que atuam no combate ao tráfico de animais silvestres calculam que esta atividade movimenta cerca de US$ 10 bilhões/ano em todo o mundo. O volume de animais silvestres oriundos do Brasil representa algo entre 5 a 7% deste total (US$ 500 milhões a US$ 700 milhões). Entre as principais cidades e municípios fornecedores de animais silvestres para os contrabandistas que atuam no eixo Rio-São Paulo destacam-se: (...) o Estado de Mato Grosso, municípios de: Cáceres, Cuiabá e Rondonópolis.”1
No Estado de Mato Grosso tanto a caça como o contrabando e a captura ilegal estão à mercê do mais voraz predador do planeta - o homem. O descaso das autoridades governamentais e da própria população é tão expressivo, que se publica em jornais da capital os nomes de caçadores denominados profissionais, sendo que em nosso país esta modalidade (caça profissional) está proibida desde 1967, através da Lei no 5.197, de 3 janeiro (art. 2º), constituindo crime com pena de detenção de 18 meses a 3 anos, e multa, conforme prevê a Lei no 9.605, sancionada em 12 de fevereiro de 1998.
Neste Estado, a caça amadora também está proibida através de sua Constituição (art. 275), e Lei Complementar n° 38, de 21 de novembro de 1995, que dispõe sobre o Código Ambiental e, antes mesmo desse dispositivo legal existir, foi criada em 1992 uma Delegacia Especializada da Natureza para coibir e repreender aqueles que a praticam. Além desses mecanismos, fora implantada Varas Especializadas e Juizados Ambientais de Pequenas Causas, fundamentais para a salvaguarda da nossa fauna, à exemplo do JUVAM – Juizado Volante Ambiental de Mato Grosso, que vêm prestando relevantes serviços de proteção ao meio ambiente e, conseqüentemente, aos animais que fazem parte dos ecossistemas abrangidos em sua área de atuação.
A necessidade de proteção da fauna tem atraído a atenção de todos, quando dados e informações como estas, contidas no Relatório da WWF, chegam a ser escandalosas. A situação é gravíssima e deve ser tratada como tal, mas na verdade, o que vem gerando muita polêmica e discussões acirradas no mundo jurídico é a chamada competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre fauna e caça, disposta no artigo 24, inciso VI, da Constituição Federal, tendo em vista que os Estados, seguindo essa orientação, estão proibindo a caça amadora em seus territórios. A matéria está sendo bombardeada pela Associação Brasileira de Caça, com o intuito de criar os famosos parques de caça para o prazer daqueles que detestam finais de semana em Paris, sendo que a caça de subsistência, aquela praticada pelos índios está salvaguardada, bem como aquela realizada para saciar a fome do agente, conforme previsto na Lei no 9.605/98, em seu art. 37, inciso I.
A primeira tentativa contra dispositivo constitucional estadual proibindo a caça deu-se em São Paulo pela Associação Brasileira de Caça, que entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade, sustentando a tese da incompatibilidade do art. 204 da Constituição paulista, que proíbe a caça, sob qualquer pretexto, com o § 1° do art. 24 da Constituição Federal, entendendo que o dispositivo estadual invadiu competência da União, quando edita norma geral proibitiva em matéria de competência concorrente, na qual é reservada à União a edição de norma geral, já contemplada na Lei no 5.197/67. Desde logo se percebe que, dispondo-se a apreciar uma questão de inconstitucionalidade, a Entidade, ao invés de ater-se ao exame da atual Carta Magna e apontar-lhe eventual ferimento, apoia-se, preferencialmente, numa lei federal ordinária, sancionada, além do mais, quando vigia a antiga Constituição Federal de 1946. Ainda tratando deste caso em particular, perante o Supremo Tribunal Federal, evidencia-se a petição do Procurador Geral da República sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade do art. 204 da Constituição do Estado de São Paulo, provocada através de representação da Associação mencionada, com base em parecer do Professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho2, no qual cita doutrina nacional e estrangeira, evidenciando que o direito constitucional brasileiro (CF, art. 25, § 1°) se afina “perfeitamente com a doutrina”, daí decorrendo “a autodeterminação dos Estados-membros, não só para estabelecer as respectivas Constituições como também as leis que os devem reger”, ressaltando, todavia, os seus “limites”. O eminente Professor reconhece a “mudança”, objeto do art. 24, inciso VI, que introduziu a competência concorrente da União com os Estados e o Distrito Federal, para legislar sobre caça e fauna, pois a Constituição que antecedeu a Lei Federal no 5.197, em 1946, bem como a que se lhe seguiu em 1967, tratava a matéria como de competência privativa da União. Observa, em suas considerações, que “sendo a legislação sobre caça, de competência concorrente, cabe à União editar normas gerais sobre a matéria”, e segue em sua linha de pensamento afirmando que “estas normas gerais é que podem restringir, proibir, proteger, encorajar, promover a caça”.
A ilustríssima Douta em Direito Ambiental, Helita Barreira Custódio, em seu Parecer Jurídico, após completo relatório sobre a ADIN em estudo, bem como uma profunda exposição jurídica sobre competência do Estado-membro para sua proteção, expôs que “A Constituição do Estado de São Paulo, de forma evidentemente compatível com as disposições da Constituição Federal (arts. 18, 25, e §§ 1°e 3° - competência para auto organização, c/c os arts. 23, VI, VII; 225, §§ 1°, 2°, 3° e 4° – competência concorrente), em defesa dos últimos animais silvestres ainda existentes no território estadual, estabelece norma proibitiva (...)”3
Antecedendo a Lei no 6.905/98, a manifestação do Supremo Tribunal Federal, quando teve oportunidade de pronunciar-se sobre a matéria, dispôs que “os animais silvestres, onde quer que se encontrem, são de propriedade do Estado, como declara o art. 1° da Lei no 5.197/67, assim querendo dizer que são propriedade da nação. O bem não é da União, estritamente, mas do Estado, ou melhor, da Nação Brasileira”.4
Com o advento da Lei no 6.905/98, apesar do grande esforço despreendido por várias organizações brasileiras, como é o caso das Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil e centenas de organizações ambientais e de defesa animal contra a caça amadora (desportiva), com exceção do Rio Grande do Sul, ficou cristalina a intenção do legislador em beneficiar os caçadores e os seus parques de caça, reforçando a maior parte do texto legal como norma penal em branco, dependente de autorizações de ordem administrativa, deixando muito a desejar.
Na esfera da competência concorrente para legislar, entendo que caça e pesca se encontram no mesmo patamar, ou seja, cabe aos estados brasileiros definir o período da reprodução dos peixes, tendo em vista a diversidade de suas bacias hidrográficas ocorrentes em cada unidade federativa, mesmo abrangendo outros Estados. Portanto, a restrição e a proibição da pesca são de competência dos Estados, tendo em vista suas peculiaridades regionais, não cabendo à União esta tarefa, uma vez que foge da ordem geral, pois a mesma não é uniforme e sim peculiar, assim como a caça, por ter que levar em conta os ecossistemas locais e regionais.
Em Mato Grosso, a Associação Brasileira de Caça tentou desesperadamente criar as fazendas desportivas, enviando proposta aos constituintes quando da elaboração da Constituição do Estado de Mato Grosso em 1989, mas, a tentativa foi frustada pela grande manifestação proporcionada por organizações brasileiras e estrangeiras.
A segunda tentativa se deu quando aprovada a Lei Complementar que dispõe sobre o Código Ambiental do Estado de Mato Grosso, em 1995, que recebera como emenda aditiva ao artigo 67 um parágrafo único, que permitia a abertura de fazendas de caça no Estado de Mato Grosso e que fora vetado pelo Governador Dante Martins de Oliveira, permanecendo, assim, o texto que as proíbe, tendo em vista a salvaguarda de nossa fauna e dos anseios da população mato-grossense em preservá-la para as presentes e futuras gerações, como apregoa a Carta Magna Brasileira.
A terceira tentativa, ainda no Estado de Mato Grosso, foi a de sancionar uma lei ordinária que tinha a pretensão de derrubar dispositivo constitucional, quando da apresentação de um projeto de lei para a criação das fazendas de caça, em especial no Pantanal, ferindo frontalmente o artigo 275 da Constituição do Estado de Mato Grosso, que proíbe a caça amadora e profissional em seu território.
Na ocasião, a Assembléia Legislativa, a pedido do autor do famigerado projeto, realizou uma Audiência Pública, que contou com a participação do Ministério Público, do IBAMA, do Exército Brasileiro, da Ordem dos Advogados do Brasil- Seccional de Mato Grosso, organizações ambientalistas, fazendeiros que se manifestaram por escrito, Igrejas, desembarga-dores, deputados federal e estadual, estudantes universitários e comunidade local, os quais foram unânimes contra a caça amadorista e abertura de fazendas de caça em Mato Grosso. Reproduzo alguns trechos da referida Audiência Pública, realizada no dia 16 de agosto de 1997, abaixo transcritos e comentados.
O Advogado Luís Alfeu Moojem Ramos, renomado Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso e membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB – Seccional do Estado de Mato Grosso, estudou a matéria e chegou à seguinte conclusão, acerca dos parques de caça: “...destina-se a atender interesses particulares dos caçadores, da indústria de armas e munições, de comerciantes da fauna silvestre e do comércio paralelo incentivado à custa da fauna mato-grossense e dos interesses maiores da coletividade.” e, dando continuidade à sua explanação sobre a situação caótica da fauna brasileira e local, apresentou o fundamento de que “dados do IBGE evidenciam a ascensão do gráfico, sendo que, já em setembro de 1992, segundo o referido Órgão, 303 eram as espécies incluídas nesse rol. O desaparecimento da fauna silvestre, de lá pra cá, vem aumentando em conseqüência da derrubada de florestas, das queimadas, do emprego de agrotóxicos, da destruição de seus habitats, em decorrência de atividades humanas, com a expansão agrícola, mais notadamente em virtude da caça, uma vez que a fiscalização nunca foi implantada no Brasil (...)”.
O estímulo à formação e criação dos parques de caça vai de encontro à campanha contra a violência que impera no Brasil, pois incentiva o armamento e traz consigo situações perigosas, como é o caso dos conflitos gerados entre latifundiários e os “sem terra”, tendo em vista que as armas a serem utilizadas nos referidos parques com o intuito de caçar animais podem acertar outros alvos que não aqueles e, neste caso, o Professor Luiz Alfeu, com muita propriedade disse que “traduz incoerência política e desestabiliza o programa encetado pelo Governo Federal, através da Secretaria de Direitos Humanos, de desarmamento da população como forma de conter a violência, do mesmo modo que introduz a incongruência no plano ambiental, já que o Governo Federal pretende formular proposta junto à ONU, para a criação da Reserva da Biosfera do Pantanal, reconhecendo-a como Patrimônio Cultural da humanidade. Uma das vantagens que a medida traria ao Brasil seria a de cercar maior volume de créditos externos para projetos de preservação ambiental do País. Na realidade, cuida-se de uma tentativa para os caçadores, um código de caça de utilização comercial da fauna brasileira, contrário ao progresso moral da humanidade e da ciência.”.
Seguindo a mesma linha de pensamento do orador anterior, a Desembargadora Shelma Lombardi de Kato5 se refere à Lei Complementar do Estado de Mato Grosso n° 38/95, que dispõe sobre o Código Ambiental do Estado, como uma “norma infraconstitucional atualíssima”, à luz dos conceitos mais modernos e avançados do direito, pois a mesma proíbe a caça tanto amadora, como profissional. É de se concordar piamente com a afirmação da Digníssima Desembargadora, mesmo porque esta lei também vedou o comércio de espécies da fauna silvestre e de seus produtos no Estado de Mato Grosso e colocou os animais que constituem a fauna, bem como seus ninhos, abrigos, criadouros naturais e ecossistemas necessários à sua sobrevivência como espécie, como bens de domínio público, não se distanciando de maneira alguma dos preceitos constitucionais. Ainda tecendo comentários sobre o projeto de lei em análise que pretende a abertura de parques de caça no Estado de Mato Grosso, a Des. Shelma demonstra em seu discurso que “outro princípio violado é o princípio da precaução, que veda toda e qualquer prática que coloque em perigo de dano grave e irreversível o meio ambiente que impedisse bem público, bem do uso comum, de ser preservado para as futuras e presentes gerações.”
Demonstrando por dados estatísticos que a fauna silvestre está em extinção no Brasil, a Des. Shelma chamou a atenção dos presentes para a situação da fauna matogrossense, que está sendo dizimada, devido à ausência da fiscalização por parte dos organismos públicos por responsáveis. Mesmo que a parte interessada em criar tais parques alegue que a caça traria grandes dividendos e um deles seria o de repassar o dinheiro dos registros de caçadores para o órgão fiscalizador realizar a fiscalização desses “colaboradores”, isso no mínimo é incoerente. Segundo a Desembargadora, “...quem os asseguraria que a fiscalização efetivamente iria acontecer, num momento histórico em que o Brasil assiste ao desmonte do Estado, partindo para a privatização, para se desligar de seus compromissos, para reduzir o seu tamanho em nome da privatização e da globalização. Se nunca houve fiscalização, por que haveria a partir de agora? O princípio da prevenção, Senhores, está em sérios riscos. Nós dependeríamos do escrúpulo do caçador, mas a verdade seja dita, a caça se pratica ou por prazer, ou por dinheiro. E na maior parte das vezes, pelas duas coisas juntas. Como se entregar a guarda do galinheiro às raposas?”
Na audiência pública tivemos a oportunidade de ouvir as palavras do eminente Promotor de Justiça, Doutor Guiomar Teodoro Borges, representando a Procuradoria de Justiça do Estado de Mato Grosso, quando narrou os acontecimentos últimos:
“Em primeiro lugar, nós passamos, há pouco tempo, por um processo constituinte derivado no Estado e a idéia central foi no sentido de que não fosse permitida a caça amadora, ou mesmo profissional, fosse ela de qualquer natureza. Posteriormente e agora bem mais recentemente, foi editado um Código Ambiental no Estado de Mato Grosso, através de uma Lei Complementar que passou também por discussões. E eu tive a oportunidade de acompanhar pari passu os segmentos, as discussões à respeito e a conclusão a que se chegou, com folgada margem de preponderância, foi exatamente no sentido de proibir a caça no Estado de Mato Grosso...Parece-me que o rumo que a sociedade ganha, os valores que a sociedade cultua nos últimos tempos, é exatamente o contrário....o que se quer, sob todas as formas, é preservar os recursos ambientais aí existentes, sobretudo os recursos naturais....que a posição do Ministério Público é exatamente uma posição contrária à caça.”
De igual importância as palavras do General José Batista de Queiróz, representando o Exército Brasileiro em Mato Grosso:
“Me fixei em cinco princípios, que são preconizados e defendidos pelas Nações Unidas......o princípio da vida, o princípio da saúde, o princípio da paz, o princípio da liberdade e o princípio do meio ambiente. A caça agride todos esse princípios: da vida, porque nós estamos caçando e matando os animais; da saúde, porque há risco de não se ter controle sobre as doenças; da paz, quando poderá haver uma difusão de armas e, hoje a ONU prega pelo mundo inteiro aquilo que se chama a cultura da paz, vamos desarmar o homem; o princípio da liberdade, nós temos a liberdade, mas nós estamos negando à fauna esse princípio...e o meio ambiente, eu também considero que a instalação desses parques agridem o meio ambiente.” (O grifo é nosso)
É de vital importância também, a parte tocante aos problemas que poderão surgir quando da introdução de animais exóticos em “habitas” naturais, como apregoa com fortíssima razão a Associação Brasileira de Veterinários de Animais Selvagens, informando com clareza que a abertura de fazendas de caça no Estado de Mato Grosso “trará para ele várias espécies exóticas, como avestruzes, antílopes, faisões, etc. Este fluxo de espécies exóticas tem ameaçado em muito a sanidade dos rebanhos locais tanto de animais domésticos quanto silvestres. .... Ainda sobre as fazendas de caça, podemos colocar ainda mais um sério problema que elas podem causar. Seriam os desequilíbrios que as fugas poderiam causar na fauna autóctone. A fuga de um casal de faisões poderá ser o responsável pela extinção das perdizes....”.
Pela exposição das idéias, entendimentos e controvérsias sobre fauna, no que diz respeito à sua situação no Brasil quanto à proteção das espécies, bem como, na esfera jurídica, em que pese a discussão sobre a competência de se legislar concorrentemente, só podemos concluir que ainda há resistência por parte da União em aceitar com bons olhos as manifestações dos Estados brasileiros em salvaguardar seu patrimônio e, para tanto, legislar em defesa de suas peculiaridades, área essa que foge da competência da União, tendo em vista que a mesma só legisla de forma geral. Portanto, se cabe aos Estados definir a época de reprodução dos peixes que fazem parte das bacias hidrográficas existentes em seus territórios, não poderiam jamais se ausentar da defesa da fauna existente em seus ecossistemas.
Com ênfase, minhas palavras não poderiam ter maior ressonância do que as proferidas pelo ilustrado Procurador da República Paulo de Bessa Antunes6, em sua magnífica obra “Curso de Direito Ambiental”, demonstrando que “a Constituição Federal, com o objetivo de efetivar o exercício do direito ao meio ambiente sadio, estabeleceu uma gama de incumbências para o Poder Público, arroladas nos incisos I e VII do § 1° do art. 225. Uma questão prévia que se coloca ante o jurista é a de saber qual a natureza das normas constitucionais contempladas não apenas no § 1° mas, isto sim, em todo o art. 225.”
O Doutor Paulo de Bessa Antunes, dando seqüência ao exposto, coloca que:
“Um correto equacionamento da questão é imprescindível para que a lei seja adequadamente aplicada. Inicialmente, cumpre observar que o” caput “do art. 225 instituiu um interesse difuso, denominado [data vênia] equivocadamente de direito, de ampla abrangência social. Todo conjunto de normas do art. 225 estabelece um rol de ações e omissões que devem, desde logo, ser observadas seja pela Administração, seja pelos particulares.”.
Fortalecendo o entendimento de que os dispositivos contidos no art. 225 da Carta Magna necessitam de uma legislação de menor hierarquia, apesar de alguns desses dispositivos já possuírem regração infraconstitucional, quando da promulgação da mesma, segundo Paulo de Bessa Antunes, “cuida-se, portanto, de investigar quais destas normas permanecem integradas ao ordenamento jurídico, quais foram efetivamente revogadas”. Estas questões são de importância ímpar na medida em que “de sua solução depende boa parte da eficácia do artigo constitucional que agora estamos examinando”.
Procedendo a exame indispensável, o mesmo e ilustre Procurador da República preleciona que “a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios se alarga, em nosso sistema, às seguintes matérias, por força do art. 23 e seus incisos, a proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (VI); preservar as florestas, a fauna e a flora (VII)...A competência concorrente abrange a produção legislativa sobre florestas, caça, pesca, fauna, ...”art. 24, VI, VIII).
Não seria possível nos afastar completamente das dúvidas que circundam o tema da competência concorrente quando tratamos dos limites que se posicionam na amplitude da norma geral, pois, sempre haverá incertezas até onde a norma será efetivamente geral, a partir de onde ela estará particularizando.
A norma geral é aquela que enuncia princípios, definições, como por exemplo, os institutos constitucionais: direitos e garantias individuais, forma federativa do estado etc., e não se prende a detalhes peculiares, como, por exemplo, o redimensionamento das áreas de preservação permanentes, o estabelecimento de regras básicas para o uso e o parcelamento do solo (linguagem municipal), assim como a maneira mais restritiva de se garantir a perpetuação de espécies da fauna silvestre.
Este exame das peculiaridades regionais assume decisiva relevância, pois constitui critério inarredável para quem se disponha a legislar em proteção da fauna. A própria Lei no 5.197/67 já lhe emprestara especial importância, ao facultar a obtenção de licença para a caça, que tolerava, já a subordinava às “peculiaridades regionais” de cada Estado-membro.
Dizia que tal licença poderia ser concedida quando “peculiaridades regionais comportarem o exercício da caça.” (art. 1°, §1°).
Diante de tal clareza da Constituição Federal, todos os constituintes estaduais do Brasil inteiro, bem compreenderam que passavam a repartir com a União a sua competência para legislar, concorrente e supletivamente, a propósito de meio ambiente, caça e pesca.
Assim foi que o constituinte estadual do Acre incluiu, no seu art. 206, inciso V, a sua competência para legislar sobre a fauna e a flora, a fim de protegê-las das práticas predatórias e devastadoras das espécies ou que submetam os animais à crueldade.
Alagoas, no art. 217 da sua Constituição, incluiu a sua competência para “definir os espaços territoriais a serem protegidos”, a fim de “proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade.”
No Amazonas, o seu art. 229 estabeleceu a sua competência concorrente à definição de “espaços territoriais a serem especialmente protegidos”, para, assim, “assegurar o equilíbrio ecológico” e “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade”.
A Bahia criou um Conselho Estadual de Meio Ambiente para o planejamento e a administração dos seus recursos ambientais (art. 212) e impôs ao Estado e aos municípios a obrigação de definir espaços territoriais especialmente protegidos, bem como o dever de proteger a fauna e a flora, em especial as espécies ameaçadas de extinção, “fiscalizando a extração, captura, produção, transporte, comercialização e consumo de seus espécimes e subprodutos, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a sua extinção ou submetam os animais à crueldade”.
No Ceará, o constituinte procedeu da mesma forma: impôs-se o dever de preservar e de defender a fauna e a flora, compondo, para assegurar a efetividade dessas medidas, um Conselho Estadual do Meio Ambiente – COEMA (art. 259, § Único, II e XI), estabelecendo também áreas de preservação permanente.
O Espírito Santo não divergiu: impôs também o dever de zelar pela preservação do meio ambiente (art. 186), mediante proteção da fauna e da flora, assegurando a diversidade das espécies, principalmente as ameaçadas de extinção (§ Único, III)
Goiás, igualmente, para “preservar a diversidade biológica de espécies e ecossistemas existentes no território goiano”, deliberou criar organismo com nível de Secretaria de Estado, para observância de “um Sistema de Prevenção e Controle de Poluição Ambiental”. Dentre outras medidas que entendeu de sua competência, deliberou “criar unidades de preservação, assegurando a integridade de, no mínimo, vinte por cento do seu território” (arts. 127, 128 e 132).
O Maranhão, da mesma maneira, estabeleceu para o Estado e seus municípios a obrigação de proteger a fauna e a flora e, para tanto, entendeu de criar “áreas de preservação permanente” (art. 239 e seguintes).
Mato Grosso do Sul arrogou-se competência para “proteger o meio ambiente, preservar os recursos naturais, resguardar o equilíbrio do sistema ecológico, ordenando o espaço territorial” (art. 222).
Minas Gerais também declarou incumbir ao Estado “proteger a fauna e a flora, evitando extinção das espécies” (art. 214, V).
O Pará declarou competir-lhe a defesa, conservação, preservação e controle do meio ambiente, cabendo-lhe “definir espaços territoriais a serem especialmente protegidos” (art. 255, III).
A Paraíba, entendendo ser “dever do Estado” defender e preservar o meio ambiente, assumiu a obrigação de defender a fauna e a flora, notadamente no sentido de evitar a extinção das espécies (art. 227, II).
O Paraná instituiu áreas de zoneamento ecológico, a fim de proteger a fauna, em especial as espécies raras e ameaçadas de extinção (art. 207, IV e XIV).
Pernambuco declarou competir-lhe, como também aos seus municípios, em consonância com a União, “a proteção de áreas de interesse ambiental”, que arrolou no seu art. 205, criando também um “Plano Estadual do Meio Ambiente”, instrumento de implementação da sua política estadual, a fim de proteger inúmeros dos seus espaços territoriais (art. 210).
O Piauí entendeu acertado definir, supletivamente à União, espaços territoriais, a fim de preservar a fauna e a flora, vedadas as práticas que provoquem a extinção de espécies (art. 237, § l°, III e VIII).
O Rio de Janeiro dispôs-se a proteger e preservar a flora e fauna, as espécies ameaçadas de extinção, vedadas as práticas que submetam os animais à crueldade, por ação direta do homem sobre os mesmos ( art. 258, IV). Decidiu promover o zoneamento ambiental do seu território, estabelecendo áreas de preservação permanente (arts. 263 e 265).
O art. 150, incisos III e VIII, da Constituição do Rio Grande do Norte, decidiu definir, supletivamente à União, espaços territoriais a serem especialmente protegidos, para proteger a fauna, vedadas as práticas que provoquem a extinção das espécies.
O Rio Grande do Sul, único Estado brasileiro que permite a caça em seu território, nos seus art. 247 e seguintes, estatuiu um rol de medidas para que – os municípios inclusive – preservassem o manejo ecológico das espécies e ecossistemas, definindo espaços territoriais a serem protegidos, ressaltando que a palavra manejo aqui empregada, se refere à caça e outras atividades econômicas que envolvem a fauna brasileira ocorrente no território gaúcho.
Rondônia ordenou o seu espaço territorial de forma a conservar ou restaurar áreas biologicamente desequilibradas (art. 218 e seguintes).
Também Santa Catarina definiu espaços territoriais e seus componentes, com a finalidade de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais (art. 181).
Sergipe não ficou atrás, definiu seus espaços territoriais, a fim de proteger a fauna, em especial as ameaçadas de extinção (art. 232, § 1°, incisos III e IV).
Tocantins, ainda, determinou que se protegesse a fauna e a flora, principalmente as espécies ameaçadas de extinção (art. 110).
Obviamente, Mato Grosso como São Paulo não tiveram razões para destoar de todos os Estados-membros e constituir uma inexplicável exceção e, dentro desse entendimento geral, ambos consideraram as suas peculiaridades regionais e as espécies em extinção, quando inseriram em seus textos constitucionais a proibição da caça, seja ela profissional ou amadora, em seus respectivos territórios, tendo em vista que para o primeiro (Mato Grosso), a fauna sobrevivente provém, em sua maioria, de áreas como o Pantanal, que diga-se de passagem, Patrimônio Nacional, deve ser definitivamente preservado, pois é a última área alagada do mundo conservada, a exemplo dos Everglades National Park, localizado no sul da Flórida dos Estados Unidos da América, criado em 1947, com a idéia de proteger centenas de espécies de animais e plantas, que passou por um processo de desenvolvimento desordenado, alterando o regime das águas, abalando todo o equilíbrio natural do parque, acarretando um resultado desastroso. Para se ter idéia, na década de 30 haviam 300.000 aves e hoje existem apenas cerca de 15.000. Para o segundo (São Paulo), tem-se constatado o fato de que no escasso remanescente de 4 a 6% de cobertura florestal do Estado lutam para sobreviver, tentando escapar dos agrotóxicos e dos caçadores, animais que devem ser protegidos, por estarem ameaçados de extinção.
Finalmente, não há como negar a relevância que a atual Carta Magna empresta à defesa da natureza:
“A Constituição anterior, em preceito equivalente (Emenda no 169, art. 8°, inc. XVII, alínea h), não mencionava senão ‘florestas, caça e pesca’. Assim, denotava uma preocupação com bens naturais susceptíveis de exploração econômica, ignorando assuntos como a conservação da natureza, a proteção do meio ambiente...” 7
Valeu-se então do disposto no art. 225, § 1°, inciso III, da atual Carta Magna, que comete e atribuiu explicitamente “a todas as unidades da Federação a definição de espaços territoriais a serem especialmente protegidos.”
Concluindo não resta dúvida quanto à obrigatoriedade dos Estados em proteger a fauna local e, conseqüentemente, os ecossistemas peculiares de cada região, essenciais para a sobrevivência das espécies ameaçadas de extinção, exercendo assim, medida supletiva dentro de sua competência concorrente, traduzida definitivamente através da proibição da caça em seus territórios.
Referência Bibliográfica
1. Conteúdo retirado do Relatório intitulado “TRÁFICO DE ANIMAIS SILVESTRES NO BRASIL”, do Fundo Mundial para a Natureza - WWF
2. Representação provocada pela Associação Brasileira de Caça e Conservação, com arguição de inconstitucionalidade do art. 204 da Constituição do Estado de São Paulo, p. 2, 1990.
3. Parecer Jurídico sobre Fauna em extinção e competência do Estado-membro para sua proteção, 1990.
4. Ministro Décio Miranda, STF, voto no conflito de Jurisdição n° 6.289-SP, in RTJ 97/549: e voto no conflito de Jurisdição n° 6.115-RJ, in RTJ 91/246.
5. Desembargadora Shelma Lombardi de Kato do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, eminente Professora de Direito Civil da Universidade Federal de Mato Grosso.
6 ANTUNES, Paulo de Bessa. Curso de Direito Ambiental. Rio de Janeiro, Renovar, 2ª ed., 1992, p 42,.70-71
7. FERREIRA, Manoel Gonçalves Filho. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo, Ed. Saraiva, 1990, p. 192.

Alzira Papadimacopoulos Nogueira é Prof. da UNICEM - Faculdade de Direito de Tangará da Serra/MT

Um comentário:

Marcelo Bataioli disse...

Me admiro um professor pensar assim.
Enquanto a caça não é permitida mais, aqui no RS, os banhados, antes arrendados pelos caçadores, e que são indiscutivelmente necessários para a reprodução de aves migratórias, estão sendo DRENADOS pelos produtores de arroz, e quando já tem alguns hectares longe da agua, plantam até soja.
Mas como nesse país de hipócritas é sempre mais fácil difamar, alvejar e acusar os caçadores de "crueis", continuamos proibindo a caça regulamentada, e assim contribuimos com os grandes pecuaristas, destruindo o habitat da fauna. E mais, para seu entendimento, somente alguns animais podem ser caçados, e na sua maioria, aves migratórias e de fácil reprodução, onde são feitos estudos para controle da sua migração. Agora, matar envenenado nas lavouras diversos animais, pode, caçar, não pode.
Pais de miseráveis.