terça-feira, 6 de maio de 2008

Aspectos Legais da Eutanásia

Por Vânia Rall Daró

Eutanásia é o procedimento pelo qual se procura abreviar, de forma indolor, a vida de um doente reconhecidamente incurável e que esteja sofrendo dores insuportáveis. Por ser feita para alívio do sofrimento e até mesmo em benefício do doente, tal prática também é conhecida, entre outros nomes, por "boa morte", "morte nobre", "morte doce" ou "morte piedosa".


Com o advento do cristianismo, essa idéia de morte provocada com o intuito de aliviar dores extremas, aceita por alguns povos, sofreu um abalo considerável, uma vez que, segundo a doutrina cristã, a vida humana pertenceria a Deus e seria, por isso, indisponível. Do ponto de vista dessa moral, além do homicídio, todas as outras atitudes atentatórias contra a vida humana, tais como o suicídio, o abortamento e a eutanásia, seriam pecaminosas e totalmente condenáveis.

Dada a penetração dos valores judaico-cristãos, sobretudo no mundo ocidental, é natural que os ordenamentos jurídicos - reflexos que são da moral vigente - também não vejam com bons olhos a chamada morte piedosa. Em muitos países, esse procedimento, que, diferentemente do suicídio, deve ser praticado por uma terceira pessoa, é considerado como homicídio.

Também no Brasil, a eutanásia humana é ilegal; todavia, tendo em vista a motivação do agente, é reputada como uma forma menos grave de homicídio. Por ser considerada um crime executado "por motivo de relevante valor moral", a prática da chamada morte piedosa se enquadra na situação de homicídio privilegiado, (§ 1º, do artigo 121, do Código Penal brasileiro), sendo a pena base, reclusão de seis a vinte anos, reduzida de um sexto a um terço, segundo a legislação nacional atual.

Nessa altura, seria interessante frisar que essas considerações de ordem moral e legal são levadas em conta somente no caso da eutanásia de um ser humano. A questão da eutanásia animal nunca ensejou muitos debates e ponderações.

A resposta para essa indiferença a respeito da validade da eutanásia animal talvez resida no fato de que a moral judaico-cristã, ao mesmo tempo que condena o abortamento, o suicídio e a eutanásia praticados por seres humanos, paradoxalmente, não possui maiores preocupações com relação à supressão da vida de um ser que não pertença à espécie humana.

É sabido que, segundo a visão bíblica, os animais existiriam para servir ao homem, o qual pode, então, dispor de suas vidas como bem lhe aprouver. Do ponto de vista da moral judaico-cristã, tais seres não pertenceriam à esfera das preocupações morais humanas. Ainda segundo essa ótica, os seres humanos não teriam deveres para com os animais, e estes últimos não teriam direitos a serem respeitados.

Analisando a legislação brasileira, veremos como essa visão impregnou os dispositivos do Código Civil. Segundo o artigo 47 desse diploma legal, os animais seriam bens móveis suscetíveis de movimento próprio, conhecidos, na doutrina, por semoventes.

Ainda conforme o artigo 593 da lei civil substantiva, os animais bravios, os mansos e os domesticados, satisfeitos alguns requisitos, seriam coisas sem dono, e, portanto, sujeitas à apropriação.

Assim, partindo-se dessas disposições legais que classificam os animais como bens e coisas, não é de se admirar que o nosso ordenamento jurídico - que desaprova a eutanásia humana - aprove, sem muitos questionamentos, a eutanásia animal, como podemos observar do exame do artigo 3°, inciso VI, do Decreto Federal nº 24645, de 10/7/1934. Segundo esse dispositivo legal ainda vigente:

"Consideram-se maus tratos não dar morte rápida, livre de sofrimentos prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não".

Da leitura desse artigo infere-se que a eutanásia animal é legal e obrigatória nos casos em que a morte é “necessária”. Dessa forma, a morte dada a um animal deve ser, por força desse imperativo legal, rápida e indolor; do contrário, teremos o que se convencionou chamar maus tratos.

A prática de maus tratos, por sua vez, conforme a Lei Federal nº 9605, de 12/2/1998, é considerada crime passível de pena de detenção de três meses a um ano, e multa, com acréscimo de um sexto a um terço no caso da morte do animal. É o artigo 32 dessa lei que estabelece qual seria a conduta delituosa:

"Praticar atos de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos".

Já a Constituição Federal, datada de 1988, em seu artigo 225, inciso VII, proíbe a crueldade, ao estipular que o Poder Público tem o dever de:

"Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade."

Portanto, a lei brasileira pune os atos de maus tratos e crueldade para com os animais, sobretudo se advier a morte da vítima. Diante da necessidade de suprimir a vida de um animal, deve-se fazê-lo de forma rápida e indolor a fim de evitar sofrimento.

A discussão sobre eutanásia nos leva inevitavelmente à questão da atuação dos centros de controle de zoonoses, que são responsáveis pelo recolhimento de animais domésticos errantes. Além de recolher esses animais, é notório que esses órgãos públicos, por alegada falta de espaço para abrigar por muito tempo os animais apreendidos, acabam por matar os que não são resgatados pelos donos ou doados para particulares ou para a chamada pesquisa científica.

Atualmente, muito tem-se falado nos "sacrifícios" de animais feitos freqüentemente pelos centros de controle de zoonoses nacionais. Em alguns deles – ouve-se dizer – os animais estariam sendo mortos com golpes de paus, por enforcamento, por eletrocução ou por outros meios cruéis. Essas atitudes, se existentes, caracterizariam, no mínimo, a prática de maus tratos, passível de punição segundo o ditame do artigo 32 da já citada Lei nº 9605/98.

Entretanto, mesmo com relação aos CCZs onde pretensamente se daria aos animais uma morte não dolorosa - admitindo que exista uma morte provocada indolor -, caberia discutir duas questões. A primeira delas seria: ocorre realmente uma eutanásia com os animais que são mortos nesses centros? A segunda questão seria: As mortes provocadas em câmara de gás, em câmara de descompressão de ar, ou por meio de injeção letal seriam realmente não dolorosas?

Respondendo à primeira questão, se considerarmos que para caracterizar a eutanásia é necessário haver um estado de sofrimento causado por uma doença incurável, poderemos deduzir indubitavelmente que nos centros de controle de zoonoses nacionais não ocorre uma verdadeira eutanásia, uma vez que os animais mortos, via de regra, não apresentam dores insuportáveis decorrentes de doença irremediável. Nesse sentido, a morte provocada não representa um alívio, muito menos um benefício para os animais assim tratados, constituindo, isto sim, um extermínio.

No que se refere à segunda questão, pode-se dizer que é muito discutível que esses procedimentos citados sejam indolores. Obviamente, existem meios piores de matar; todavia, os que são utilizados nos CCZs a título de eutanásia não realizam a contento o que apregoam, uma vez que é conhecida a agonia dos animais mortos sobretudo nas câmaras de gás e nas de descompressão de ar.

Assim, o que ocorre nos centros de controle de zoonoses nacionais é um verdadeiro extermínio reiterado de animais, na sua maioria, saudáveis. Em nenhum momento, a supressão de suas vidas é feita para beneficiá-los. Se lhes fosse dada a possibilidade de escolha, com certeza prefeririam viver, uma vez que o instinto de preservação é uma das mais representativas forças da natureza.

Alega-se como motivo para a execução dessa política de massacre maciço a incolumidade pública. Porém, sabemos que o maior agente transmissor de doenças para o ser humano é o seu próprio semelhante. Não se descarta, com essa afirmação, a existência de doenças transmitidas pelos animais ao homem; o que se pretende demonstrar é que existem outras soluções possíveis, como, por exemplo, a que foi encontrada pela legislação italiana.

Conforme o § 6º, do artigo 2º, da lei italiana nº 281/1991, os cães recolhidos nos canis municipais e nos refúgios poderão ser sacrificados de forma exclusivamente eutanásica, por intervenção de médicos veterinários, somente se estiverem gravemente doentes, acometidos por doença incurável ou de comprovada periculosidade. Em termos práticos, isso significa que, na Itália, os cães errantes capturados não poderão mais ser mortos, a não ser nos casos em que se justifique realmente uma eutanásia.

Quanto aos gatos errantes, a já citada lei italiana, nos parágrafos 7º, 8º, 9º e 10º do artigo 2º, acolhe a idéia dos chamados "gatos livres", a exemplo do que fez a França por meio da lei nº 99-5, de 5/1/1999. Segundo a legislação vigente nesses dois países, depois de esterilizados e identificados, os gatos passam a viver em colônias, por sua vez, geridas por uma associação protetora dos animais.

Além de instituir a figura dos gatos livres (“chats libres”), a lei francesa estabelece algo revolucionário para nossos padrões jurídicos. No seu artigo 22, o qual revoga o artigo 521-1 do Código Penal francês, proíbe-se a posse de um animal a título definitivo ou temporário para quem lhe tenha sido cruel ou causado sevícias graves. Diz esse artigo:

“Artigo 22. O fato, público ou não, de praticar sevícias graves ou de cometer um ato de crueldade para com um animal doméstico, domesticado ou mantido em cativeiro é punido com dois anos de prisão e multa de 200.000 francos. Como pena complementar, o tribunal pode proibir a posse de um animal, a título definitivo ou não.”(Grifos nossos.)

Se compararmos com a política de controle populacional de animais errantes atualmente adotada no Brasil, não haverá dúvidas de que essas legislações da Itália e da França refletem um padrão moral mais elevado. Essas leis também demonstram que muitas vezes as soluções se encontram na tolerância e na mudança de mentalidade, tão necessárias em um mundo que ainda desrespeita o caráter sagrado da vida.

Resumo de palestra proferida no III Congresso do Bem-Estar Animal, aos 15 de outubro de 2000, em Embu das Artes, São Paulo.

Observação: este texto foi escrito na vigência do Código Civil brasileiro de 1916.

Vânia Rall Daró é advogada e tradutora pública em Bauru/SP.
apascs

Nenhum comentário: