terça-feira, 1 de junho de 2010

Lei de experiências em animais ofende a Constituição Federal

A legislação que permite a realização de experiências em animais, em uma abordagem interpretativa atual afronta a Constituição Federal,




que veda justamente atos abusivos ou cruéis cometidos contra os animais. A análise é feita pelo advogado Daniel Braga Lourenço, diretor do IAA (Instituto Abolicionista Animal), para ele, contudo, essa visão de respeito à dignidade dos animais não tem prevalecido permitindo que a legislação infraconstitucional valide determinadas práticas.

O especialista explica que para o legislador “a pesquisa que faz uso de animais é vista como supostamente necessária o que, portanto, legitimaria o sofrimento animal a ela inerente”.
Daniel Braga Lourenço é professor de Direito da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e membro do ALDF (Animal Legal Defense Fund) e autor do livro, “Direito dos Animais: Fundamentação e Novas Perspectivas”. Ele sustenta que infelizmente, “enquanto a sociedade como um todo continuar a explorar os animais para as mais diversas finalidades, alimentares, vestuário, entretenimento, dificilmente conseguiremos avanços significativos em pontos sensíveis e delicados como a experimentação animal”.

Para o especialista, a sociedade sempre teve dificuldade para pensar objetivamente a respeito da natureza dos animais não-humanos. “Se admitíssemos que são, ao menos em certa medida, autônomos, racionais, vulneráveis, e, principalmente, sencientes, ou seja, capazes de sensações de dor e prazer, seríamos obrigados a repensar radicalmente o modo com que os tratamos”.

O advogado é favorável à iniciativa de se criar a Promotoria de Defesa Animal em São Paulo que pode representar um avanço significativo para a defesa dos direitos dos animais na medida em que o Ministério Público é uma entidade muito “respeitada e aparelhada para promover a tutela jurídica dos animais”.

Ele defende também que temas como ética animal e o direito dos animais sejam ensinados nas escolas e faculdades. Veja a entrevista que Daniel Braga Lourenço concedeu ao Observatório Eco, com exclusividade.


Observatório Eco: Por que é tão difícil o homem conviver pacificamente com seus semelhantes, os animais? De que maneira a ética e o direito lidam com essa questão?
Daniel Braga Lourenço: De fato, sempre houve dificuldade para pensarmos objetivamente a respeito da natureza dos animais não-humanos. Se admitíssemos que são, ao menos em certa medida, autônomos, racionais, vulneráveis, e, principalmente, sencientes, ou seja, capazes de sensações de dor e prazer, seríamos obrigados a repensar radicalmente o modo com que os tratamos.
A moralidade tradicional, bebendo em fontes aristotélicas, baseia-se na ideia de que a vida humana possui um valor moral diferenciado. Nesse sentido, a vida humana seria única, sagrada, enquanto que, de outro lado, a vida não-humana possuiria pouco ou nenhum valor inerente.
O campo do Direito apropriou-se dessa tese, construindo, a partir daí, o dogma do animal como coisa (bem móvel ou semovente), como objeto, como mero item de propriedade, e, simultaneamente, elevando simbolicamente o homem à categoria de único sujeito de direito.

Assim é que, nessa linha, as leis de proteção animal existentes adotam uma visão moral apenas indireta por meio da qual os animais são protegidos não por titularizarem direitos subjetivos fundamentais, mas sim por atenderem às finalidades humanas. Assim sendo, estas leis em geral apenas regulamentam as instituições de uso e exploração dos animais como instrumentos para os objetivos humanos.
No entanto, esta visão é equivocada, por ser completamente alheia à realidade biológica subjacente. Desde o século XIX, a perspectiva evolucionária afirma categoricamente que não há diferenças absolutas entre o homem e o restante dos animais, bem como entre os membros de todas as espécies animais. O reflexo da constatação da ancestralidade comum no campo moral é, portanto, o de que o critério do pertencimento à determinada espécie é um critério equivocado para julgarmos como um indivíduo deve ser tratado.
É certo que determinados atributos, tais como uma maior capacidade cognitiva e intelectiva, podem vir a determinar tratamentos diferenciados, como no caso, por exemplo, do acesso à educação formal. Admitimos humanos em escolas e faculdades e animais não, pois não-humanos não conseguem ler e escrever, aptidões tidas como fundamentais para o ensino tradicional. Entretanto, imaginemos que o assunto agora não é mais o direito ao ensino, mas sim o de não ser torturado ou instrumentalizado como uma coisa.

A incapacidade dos animais de ler e escrever, nesse caso, é totalmente irrelevante. Humanos e não-humanos, neste aspecto, estão “no mesmo barco”, por compartilharem a capacidade da senciência. Decorre justamente deste reconhecimento o fato de que humanos e não-humanos merecem tratamento igualitário onde estiver presentes a proteção de interesses similares ou análogos.
Assim é, portanto, que principalmente a partir da década de 70, surgem pensadores importantes que pretendem repensar o estatuto moral e jurídico dos animais.
Observatório Eco: O Brasil aprovou a lei Arouca, 11.794/2008, que permite a realização de experiências com os animais. Existem aspectos dessa nova legislação que possam ser contestados judicialmente? Essa legislação não ofende de alguma forma a Constituição Federal? Ou é um caminho sem volta? Dificilmente o Brasil irá banir essa prática?
Daniel Braga Lourenço: Infelizmente, a maior parte dos cientistas e pesquisadores está imersa no mesmo paradigma de coisificação da vida animal. Neste sentido, há uma tendência de justificativa da questão da experimentação com animais sob o argumento meramente utilitário do “mal necessário”.

A Lei Arouca, Lei n.º 11.794/08, enquadra-se no modelo de norma protetiva abordada na pergunta anterior, ou seja, ela somente regulamenta uma prática (utilização de animais para finalidade científica ou didática) que explora os animais como instrumentos, como coisas.
Penso que estas leis, numa abordagem hermenêutica mais atual, afrontam o mandamento constitucional contido no art. 225, § 1º, VII, que veda justamente os atos abusivos ou cruéis cometidos contra os animais. A meu juízo, há um reconhecimento implícito, contido neste dispositivo constitucional, da dignidade da vida não-humana, ou como pretendem os constitucionalistas alemães, da “dignidade da criatura”. Sob este ponto de vista, mais avançado, normas que consentem com práticas abusivas ou cruéis deveriam ser vedadas por afrontarem diretamente a própria Constituição Federal. Todavia, esta ainda não é a interpretação prevalente. Entende-se que a legislação infraconstitucional poderia excepcionar determinadas práticas que não traduzam o paradoxal “sofrimento desnecessário”. Assim, a pesquisa que faz uso de animais é vista como supostamente necessária, o que, portanto, legitimaria o sofrimento animal a ela inerente.
O modelo animal pareceu viável nos séculos XVIII e XIX, pois os conhecimentos fisiológicos e anatômicos ainda eram bastante incipientes. Hoje, em pleno século XXI, essas idéias são claramente comodistas e obsoletas.

A própria “Lei Arouca”, em seu artigo 14, § 3º, e a Lei de Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/98), em seu artigo 32, § 1º, estabelecem o princípio de que a experimentação com animais é atividade excepcional, que nunca deve ser realizada se existirem métodos substitutivos à prática.

Felizmente hoje já contamos com inúmeras opções de métodos que tornam o uso dos animais completamente descabido. Nas poucas atividades em que ainda não contamos com a substituição deveríamos rejeitar a utilização dos animais em razão da ausência de consentimento, premissa fundamental para a pesquisa científica em todo o mundo.
A pesquisa científica que faz uso de animais convive com um paradoxo insolúvel, qual seja: ou os animais são iguais a nós em todos os aspectos biológicos relevantes e não devemos levar adiante a pesquisa não-consentida pelas mesmas razões pelas quais não a conduzimos em seres humanos, ou os animais são diferentes de nós nesses mesmos aspectos e, por esse motivo, pela impossibilidade real de extrapolação e derivação de resultados, a pesquisa seria igualmente injustificável do ponto de vista técnico.
Enquanto a sociedade como um todo continuar a explorar os animais para as mais diversas finalidades, alimentares, vestuário, entretenimento, dificilmente conseguiremos avanços significativos em pontos sensíveis e delicados como a experimentação animal.
Observatório Eco: Para regulamentar a lei de experiências em animais, foi criado o Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal), mas a exemplo, do que acontece com o Ctnbio, que valida todo tipo de experiência com transgênicos, parece que o Concea será apenas um órgão que irá validar as experiências, e dificilmente, terá como controlar efetivamente as más-práticas desta conduta. Qual a sua avaliação do problema?
Daniel Braga Lourenço: A composição do CONCEA, tratada no art. 7º da Lei n. 11.794/08, é basicamente de pessoas ligadas à atividade de uso de animais para pesquisa, seja ela para fins didáticos ou científicos.

Assim sendo, a observação feita antes continua válida, ou seja, os pesquisadores, de forma geral, são pessoas que estão imersas no paradigma coletivo atual de exploração dos animais como objetos, e, por esta razão, tendem a defender o modelo animal sob premissas meramente utilitárias.

Nessa linha, dificilmente haverá realmente um trabalho consistente por parte deste órgão no sentido de privilegiar a substituição do uso dos animais. O prognóstico é ruim para os animais e o controle efetivo das práticas abusivas continuará a cargo da sociedade.

Por essa razão é que penso ser fundamental implementar a educação ambiental, e dentro desta matéria, a ética animal e o direito dos animais, como disciplina a ser ministrada em escolas e faculdades. Será somente com um aprofundamento deste debate que conseguiremos modificar a situação atual de completo descaso para com a vida animal.
Observatório Eco: Muitas das práticas de desrespeito aos animais são efetuadas nos cursos de veterinária, profissão que deveria amparar os animais, por que ocorre essa distorção?

Daniel Braga Lourenço: Esta é uma distorção observável em muitos cursos que deveriam realmente dar maior valor à vida animal. Infelizmente esta é uma realidade que não é exclusividade das carreiras médicas-veterinárias.

A sociedade inteira está entorpecida com o uso dos animais. Vivemos em estado de eterno torpor e não enxergamos ou não fazemos força para enxergar algo bastante claro que é a vulnerabilidade e a sensibilidade dos animais. Segundo frase atribuída a Albert Einstein, “é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”. Em se tratando de animais há muito preconceito envolvido.
Observatório Eco: São Paulo busca criar uma Promotoria de Defesa do Animal, contudo sempre vem alguém dizendo o velho argumento, com tanta pobreza, tanta criança desamparada, por que defender os direitos dos animais? Como o senhor avalia esse tipo de comportamento?
Daniel Braga Lourenço: Esse tipo de colocação é bastante comum, mas penso ser equivocada. A luta pelo reconhecimento dos direitos dos animais não é algo que seja excludente à luta pelo reconhecimento e melhoria da dignidade humana, pelo contrário.

Entendo que os dois temas estão umbilicalmente ligados, pois trabalham com as mesmas premissas e com a mesma raiz teórica de luta contra a opressão e a discriminação.

Interessante é notar que muito dos primeiros pensadores da questão animal foram grandes reformistas sociais que lutaram intensamente pelo reconhecimento dos direitos humanos. Quando pretendemos que animais possuam direitos subjetivos fundamentais não queremos alçá-los à condição humana e, tampouco, supostamente rebaixar o nível de proteção já alcançado para a humanidade.

Parece-me bastante claro que os reais defensores dos direitos dos animais são pessoas pacifistas que também compreendem que o próprio animal humano ainda é também tratado com abuso em diversas situações. As lutas são lutas irmãs, interdependentes.
Além deste aspecto, se formos aguardar que todos os problemas humanos sejam efetivamente solucionados para só então enfrentarmos outras questões, nós nunca as abordaremos, pois, sinceramente, estamos longe de qualquer solução para nossos problemas.
Observatório Eco: O senhor é favorável à criação dessa Promotoria de Defesa Animal? Por quê?
Daniel Braga Lourenço: O deputado estadual e promotor de justiça Fernando Capez protocolou, no dia 14/04, solicitação para que o Procurador Geral de Justiça de São Paulo apresente à Assembleia Legislativa um projeto de lei criando a 1ª Promotoria de Defesa Animal do país.

Esta ideia da Promotoria é do ilustre promotor de justiça Laerte Levai em tese que apresentou nos idos de outubro de 2007, no X Congresso das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo.

A iniciativa é sensacional e pode representar um avanço significativo para a causa na medida em que o Ministério Público é uma das entidades mais respeitada e aparelhada para promover a tutela jurídica dos animais.

Observatório Eco: Por que as políticas públicas falham quando o tema é resguardar a vida dos animais e também das outras biodiversidades?
Daniel Braga Lourenço: Entendo que as políticas públicas falham por imaginar que a questão animal seja uma questão secundária. Hoje percebemos que as questões ambientais já lograram sair do limbo em que se encontravam pela influência que têm sobre a dignidade do próprio homem.

Todavia, melhor estaríamos se entendêssemos que devemos proteger o planeta não pelo seu valor indireto ou reflexo, mas pelo seu valor próprio. Neste sentido, animais são seres vulneráveis, sencientes, que fazem jus à consideração moral direta, por possuírem valoração inerente.

No momento em que nos dermos conta desta realidade, seremos forçados a modificar o panorama de nossas políticas públicas relacionadas à causa animal. Infelizmente, na maior parte das vezes elas sequer existem ou são implementadas.



Roseli Ribeiro

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