ANIMAIS DE TRAÇÃO
Literalmente ferrados
JOÃO O. SALVADOR
É inadmissível aceitar que em tempos modernos, de tecnologia e conhecimentos aflorados, trafeguem pelas ruas das grandes cidades, carroças puxadas por eqüinos e muares, conduzidos por seres irresponsáveis, imprudentes, cruéis e impiedosos, em trânsito intenso, obrigando-os a se compatibilizarem com o movimento, em meio aos ruídos de motores e de buzinas.
Há séculos os animais de carga são submetidos à exploração desumana, porém, atualmente, esta situação cresce em proporções assustadoras. Só em Porto Alegre, capital gaúcha, estima-se que circulem, diariamente, oito mil carroças, que lhe confere o honroso título de a Capital das Carroças, orgulho de certos políticos.
Mesmo com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, estabelecida pela Unesco, há 30 anos, da qual o Brasil faz parte, só resta a certeza de que o descaso das autoridades vai continuar.
A alegação dos pigmeus emocionais da política é a mesma de sempre, a de que se trata de um meio de sobrevivência dos mais pobres, dos injustiçados, dos excluídos, dos miseráveis, mas não é legítimo confundir desigualdade social e ignorância, com safadeza, frieza e sadismo. Já, os condutores, por sua vez, tentam justificar, ironicamente, que somente apanha quem merece, quem é desobediente, preguiçoso e recusa a realizar o serviço.
Na realidade, não há desobediência, o que acontece é que muitos já não respondem mais aos comandos por causa da idade, do cansaço, da fraqueza, das costelas salientes, da anemia profunda e da extenuação, frente às cargas excessivas que carregam, por longo período. Muitos são mal alimentados, mal ferrados, carentes de cuidados veterinários, andam com dificuldades, mancam devido às infecções nas patas, agravadas pela escaldante temperatura do asfalto. Alguns, pela tortura dos açoites, que lhes deixam marcas visíveis, chegam a se curvar, a tombar, a desmaiar, tamanha a exaustão, sob o comando de marmanjões, de pivetes, de inconseqüentes ou drogados.
Nas instâncias turísticas, esses animais chegam a trabalhar enquanto houver a luz do dia, sob a indiferença dos turistas e do seu próprio dono. Não lhes sobra tempo para comer, para saciar a sede e repor suas energias. A sina é cruel, não há reconhecimento, nunca vão desfrutar livremente de gramados verdes e de sombra e água fresca, como recompensa. Quando incapacitado, após longo período de escravidão, os matadouros os aguardam, onde serão executadas pelos métodos mais chocantes.
É o panorama do Brasil, onde as leis dos crimes ambientais são ignoradas, que não adota as medidas sérias determinadas pelo Código Nacional de Trânsito. Não há um sistema de cadastro para todos os animais de tração, nem emplacamento e sinalização das carroças, requisitos básicos para uma fiscalização eficiente, de estímulo às denúncias de atrocidades. Nem se faz com rigor a verificação se o animal tem condições físicas adequadas e se o condutor tem habilidade e condições psíquicas para o exercício, como se faz para qualificar os motoristas. Nada mais justo exigir que o carroceiro tenha sua licença, a sua carteira de habilitação e sujeito às penas da lei.
Está na hora de acordar, caros vereadores, deputados, prefeitos e governadores, de respeitar os seres que não têm como pedir respeito e direitos. Sentimentos de dor, de fome, de sede e de fraqueza, não são exclusivos da espécie humana. Esses animais não são meros autômatos mecânicos, como insinuava Descartes.
E não basta somente ter pena, isto não alivia o sofrimento dos motores de carne e osso; não resolve, não penaliza ninguém; os que se omitem, ignoram ou assistem impassíveis as cenas trágicas, na verdade, são coniventes.
Há que pressionar as autoridades para que as leis sejam cumpridas, aperfeiçoadas, no sentido de coibir as barbáries. Cada cidadão de sensibilidade deve lutar pelos direitos dos animais, exercendo, inclusive, seu direito e dever, de respeitar às leis naturais.
JOÃO O. SALVADOR
é biólogo do Cena (Centro de Energia Nuclear na Agricultura) -USP
salvador@cena.usp.br
quinta-feira, 6 de março de 2008
ANIMAIS DE TRAÇÃO - LITERALMENTE FERRADOS
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