A luta de um estudante de Biologia para abolir as experiências com animais nas universidades
LUCIANA VICÁRIA
O PROTETOR
Bachinski, com dois dos ratos que salvou do sacrifício na UFRGS. Ele luta pelo direito de se formar sem ter de maltratar animais
Os ratos provavelmente seriam guilhotinados. Ou talvez morressem depois de um procedimento chamado deslocamento cervical: uma das mãos do pesquisador pressiona uma pinça sobre a nuca do animal, enquanto a outra puxa o rabo para trás. Em último caso, os ratos seriam colocados em um saco preto com algodão embebido em éter. Suas mucosas queimariam dolorosamente. Esses ratos são filhotes de fêmeas usadas em experimentos científicos. Pelo procedimento-padrão, seriam sacrificados. Mas esse não foi o fim dos 14 ratos de um laboratório da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O estudante de Biologia Róber Bachinski, de 21 anos, salvou os bichos. Atravessou Porto Alegre de ônibus com duas caixas de sapato sobre as pernas. Levou os ratos para casa. Ficou com quatro e distribuiu os outros entre alguns amigos. Bachinski passou a cuidar dos bichos como se fossem de estimação. Mandou fazer uma gaiola de três andares, comprou ração balanceada e bolinhas para brincar. Os ratinhos ganharam até coleiras para passear no parque. Era março de 2006. Hoje, restam apenas dois, doentes terminais, na casa de Bachinski.
A mobilização de Bachinski não foi só um ato isolado de indignação. O estudante está prestes a mudar a forma como as universidades brasileiras lidam com os animais de laboratório. Há dois anos ele abriu um processo contra a UFRGS, alegando ser inconstitucional a obrigação de assistir às aulas que contrariem seus princípios éticos. O termo jurídico para isso é objeção de consciência, uma forma de resistência pacífica à ordem superior. Na semana passada, o Ministério Público Federal publicou parecer favorável a Bachinski. É o primeiro caso como este no país.
Bachinski é contra o uso de animais para pesquisas nas universidades, principalmente quando isso envolve abrir um animal vivo, prática conhecida como vivissecção. Ele não sustenta suas idéias com argumentos religiosos. Ateu, apela para o direito de não ter sua ética abalada por uma prática supostamente enraizada na cultura brasileira. “Meu grande desafio, no momento, é provar que o uso de animais, o sacrifício e a dissecação deles, da forma como acontecem, são crimes ambientais”, diz. O uso de cobaias em laboratório, afirma, é eticamente questionável. “O suposto progresso científico não justifica a dor causada pela manipulação acadêmica.” Bachinski diz que técnicas alternativas teriam o mesmo efeito da vivissecção nas aulas de graduação. Cita um estudo feito pela Sociedade Humanitária dos Estados Unidos. A pesquisa mostra que é mais barato adotar práticas educacionais a manter animais em laboratórios.
“O suposto progresso científico não justifica a dor causada pela manipulação acadêmica”, diz Bachinski
O jovem de cabelos longos lembra um típico hippie dos anos 60. Usa roupas simples e fala baixo. Sua mãe conta que tentou dissuadir o filho de se meter em encrencas. “Ele fica enfrentando a universidade. Isso atrasa o curso. Tenho medo de ele não se formar”, diz. Bachinski diz que sempre gostou de animais. Resolveu, por isso, fazer curso técnico de zootecnia ainda no ensino médio. Conta que aos 17 anos foi obrigado a cortar rabos, orelhas e dentes de leitões vivos. A prática, comum entre pecuaristas, é uma das primeiras lições em campo dos estagiários de ensino médio. Com o tempo, aprendeu a castrar leitões a sangue-frio. “Eu os pendurava pelas pernas de cabeça para baixo. Com uma gilete enferrujada, cortava seus testículos”, afirma. “Aceitei essa violência com a certeza de que o certificado de conclusão do curso me daria credibilidade para falar contra a exploração animal.”
Não foi bem assim. O pesadelo de Bachinski voltou a atormentá-lo na universidade. Ele passou a pesquisar mais o assunto. Descobriu que a experimentação animal não é prática obrigatória na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que regulamenta o ensino no país. E que a autonomia da universidade não pode se sobrepor às garantias individuais da Constituição. Manter-se firme a seus princípios custou caro a Bachinski. Ele diz ter perdido amigos e sofrido assédio moral. “Um professor me disse: ou aceita as coisas como elas são, ou cai fora da faculdade.” Bachinski diz que passou a ter dores crônicas, de estresse. Uma amiga, que também assinava o processo, desistiu. Segundo ele, por medo de represálias.
A UFRGS afirma que a prática é necessária. Na contestação à ação de Bachinski, a universidade diz que “um número incalculável de animais é sacrificado diariamente para satisfazer as necessidades da alimentação”. Afirma também que já tentou substituir as aulas práticas por programas de multimídia, mas que “isso não atendeu aos interesses dos próprios alunos, que teriam solicitado o uso de seres vivos”. Um dos citados no processo, Carlos Olegário da Costa Diefenbach, professor titular de Fisiologia, disse à reportagem que não tem interesse em falar sobre o assunto.
ELE PRECISA SOFRER?
Teste de vacinas em um macaco na França. Na Europa e nos EUA, a tendência é reduzir o uso de animais
No 1º ano do curso, 42% dos estudantes de Biomédicas enfrentam algum conflito ético, de acordo com uma pesquisa da Associação Latino-Americana de Ética, Negócios e Economia. Isso acontece porque o uso de animais expõe o estudante a inúmeras contradições, diz o órgão, em documento publicado em maio. “Biólogos e médicos, com a missão de reduzir ou eliminar o sofrimento, são obrigados a matar para depois salvar, desrespeitar para, assim, respeitar.”
A autoridade do professor é raramente questionada pelos estudantes, que se calam por receio de se prejudicar. “Eles não são encorajados a expressar suas preocupações”, diz o sociólogo americano Arnold Arluke, da Universidade Nova York. “Os dilemas dos alunos são vistos pelos professores como questões pessoais. A coisa vai passando e de certa forma os alunos se acostumam.” Segundo o Ministério da Educação, a ética não é disciplina obrigatória em pelo menos 50% dos cursos no Brasil. Na universidade de Bachinski, ela não existe nem entre as optativas.
Afinal, é possível se tornar um bom biólogo sem usar bichos em laboratórios? A experiência internacional mostra que sim. Na Europa e nos EUA, os animais estão sendo substituídos. Cerca de 75% das instituições americanas não usam animal vivo no ensino de graduação. É o caso de universidades conceituadas como Harvard, Stanford, Colúmbia e Yale. Na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), os professores usam só animais que tiveram morte natural. Na pós-graduação, o uso de animais parece ser mais justificado academicamente. Mesmo assim, tem diminuído no mundo.
42% dos estudantes de Biomédicas enfrentam conflito ético pelo uso de animais, diz uma pesquisa
Por que, então, essa é uma prática tão comum em laboratórios, centros de pesquisas e estabelecimentos de ensino? Talvez porque seja tão arraigada que poucos questionem. Filósofos como René Descartes comparavam os animais a peças de máquinas, a serviço dos homens. O impulso maior à vivissecção veio com o lançamento da obra Introdução à Medicina Experimental, do fisiologista Claude Bernard, no século XIX. Ela é tida hoje como um procedimento comum no ensino.
O biólogo americano George Russell, da Universidade Princeton, não acredita que a vivissecção possa tornar a pessoa mais capacitada tecnicamente. Menos ainda emocionalmente. “Cada vez que mata um animal, o estudante se torna mais insensível. Tais práticas levam a danos sistemáticos e progressivos na capacidade de sensibilidade e produzem mudanças de personalidade”, diz. “Uma pessoa que pode infligir sofrimento em animais pode fazer o mesmo com seres humanos.”
Se Bachinski tiver sucesso no final do processo, pode criar jurisprudência. Um caso idêntico ao dele abriu precedente para a atual lei estadual na Califórnia. A estudante americana Jenifer Grahan, da Universidade da Califórnia, se recusou a dissecar um animal em aula prática. A instituição não ofereceu a ela alternativas didáticas. A aluna levou o caso ao tribunal. Em pouco mais de um ano, uma centena de estudantes fez o mesmo e a Califórnia estabeleceu por lei os direitos do estudante de não usar animais. Em Bauru, interior paulista, uma lei municipal permite a objeção de consciência àqueles que lidam com experimentação animal em escolas ou centros de pesquisa. Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou uma lei que regulamenta o uso de animais no ensino. Mas ela não prevê como lidar com objeções pessoais de alunos como Bachinski.
Fpnte:Revista Época
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