quinta-feira, 2 de abril de 2009

Avanço legal


Pesquisadores analisam evolução da legislação sobre experimentação animal no país e apontam que lei federal sancionada em novembro é um avanço concreto para a ciência (Foto: UFRJ)


Ao longo de décadas, a comunidade científica brasileira teve que lidar com as consequências da ausência de uma lei geral atualizada

que sistematizasse as pesquisas referentes à vivissecção – ou realização de estudos em animais vivos – e à experimentação com animais para fins didáticos e científicos.

A falta de regulamentação para a atividade gerou inúmeras interpretações jurídicas, provocando atrasos e prejuízos em projetos em andamento. Mas, de acordo com um artigo publicado na revista Acta Cirugica Brasileira, esse cenário poderá mudar com a sanção dada pelo presidente da República, em novembro de 2008, à lei 11.794, que regulamenta a atividade científica com uso de animais.

De acordo com um dos autores do artigo, o professor Ruy Garcia Marques, do Departamento de Cirurgia Geral da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a lei representa um avanço concreto, por ter maior precisão e ser mais focada na orientação e na regulação do que em sanções.

Segundo ele, o que existia até agora eram normas não regulamentadas – na maior parte não específicas do tema – que eram utilizadas, por extensão, para a regulamentação da prática científica com animais.

“Era realmente surpreendente que o Brasil, que forma 10 mil doutores por ano, que chegou à 15ª colocação no ranking internacional de publicações científicas e que, notadamente, vem possibilitando elevação substancial de recursos destinados ao fomento da pesquisa científica e tecnológica, ainda não possuísse uma legislação federal que regulamentasse as atividades de pesquisa com animais de laboratório, imprescindíveis para a ciência e para o desenvolvimento tecnológico e para inovação no país”, disse Marques à Agência FAPESP.

Os outros autores do artigo são os professores Marcelo Marcos Morales e Andy Petroianu, dos departamentos de Cirurgia Geral da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

A lei sancionada deverá ser regulamentada em até 180 dias a partir de 9 de outubro do ano passado, data da publicação no Diário Oficial da União. Segundo Marques, a única lei que tratava do assunto é de 1979, mas não chegou a ser regulamentada.

“A Lei 6.638 regulava a questão, estabelecendo normas para a prática didático-científica da vivissecção de animais. Porém, por ser insuficiente, imprecisa e incompleta, situava-se muito aquém dos anseios e das necessidades dos pesquisadores. Ela não teve qualquer eficácia, na prática, e caiu no esquecimento”, disse o também diretor-presidente da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

Marques conta que a Constituição de 1988 proíbe a prática que submeta animais a atos em que possa estar presente a crueldade e aplica sanções penais e administrativas ao infrator, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

O problema é que o conceito de “crueldade” não foi especificado pela norma constitucional. “Ficava a critério do legislador ou do julgador, na ausência de norma específica, determinar a extensão desse conceito”, ressaltou.

“Nessa perspectiva, na área científica a ‘crueldade’ implícita nesta ou naquela técnica ou pesquisa apresenta extrema mobilidade. A comunidade científica brasileira pedia uma norma federal abrangente e realista, mais orientadora e reguladora e menos sancionadora, em que a questão da pesquisa científica pudesse ser mais bem contemplada. E só agora isso começa a se materializar. Mas é importante destacar que ainda existem importantes passos a serem dados, no sentido de sua plena aplicação”, disse.

Conselho e comissões

Em linhas gerais, a nova lei abrange todo o território nacional, diferentemente do que ocorria até agora. Segundo Marques, em virtude da lacuna que existia na legislação federal, os pesquisadores ficavam expostos a algumas situações absurdas e constrangedoras, como as que ocorreram, por exemplo, no Rio de Janeiro e em Florianópolis, em que projetos de lei de parlamentares das câmaras municipais tentaram banir a pesquisa científica com animais de laboratório.

Em 2001, o decreto 19.432 proibiu a prática de vivissecção e de experiências com animais em instituições veterinárias públicas municipais do Rio de Janeiro, quando presentes recursos alternativos. Para o professor da Uerj, o decreto foi um “verdadeiro retrocesso”.

Outro ponto central da discussão, segundo ele, é que a nova lei corrige uma distorção que existia no projeto de lei anterior, em que se defendia que a função executiva relativa à pesquisa ficaria vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), e não ao Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT).

“Parece-nos muito mais apropriado que essa função seja desempenhada pelo MCT, pois os animais utilizados em pesquisa, na grande maioria dos casos, são criados para essa finalidade específica, ficando a utilização de animais silvestres vinculada a pesquisas que procuram recuperar espécies em extinção, por exemplo. E esses casos já estão regulamentados por lei e vinculados ao MMA”, afirmou.

A nova lei estabelece o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), que será responsável por credenciar instituições para a criação e utilização de animais destinados a fins científicos e por estabelecer normas para o uso e cuidado desses animais.

No entanto, Marques faz uma advertência em relação à composição do Concea, que, segundo ele, parece incluir um número excessivo de participantes – serão 14 –, o que poderá burocratizar excessivamente qualquer processo, podendo tornar o conselho pouco produtivo.

“Para ser credenciadas no Concea as instituições deverão constituir, previamente, Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceua). Preocupa-nos o fato de se permitir a criação de várias dessas Ceuas em uma mesma instituição, o que pode criar casuísmos, parecendo mais apropriado que se estipulasse que cada instituição teria uma única Ceua, com representantes dos seus centros setoriais ou unidades, e que responderia por toda a instituição”, defendeu.

Marques concorda que houve um grande avanço, mas salienta que há muito trabalho ainda a ser feito para regulamentar a lei promulgada, instalar e colocar em funcionamento as comissões nela previstas. Segundo ele, muitas condutas ainda serão reguladas pelos preceitos da bioética e caberá ao Concea estabelecer os limites adequados às pesquisas com animais criados para esse fim em laboratório.

“As agências de fomento à pesquisa, bem como os gestores de instituições de ensino e pesquisa, precisam estar atentos ao importante papel que desempenharão nos próximos anos no processo de mudança da realidade da experimentação animal no Brasil. Políticas claras e continuadas serão necessárias para que o aporte de recursos financeiros seja previsto para a modernização de biotérios e manutenção de comissões de ética e para que a formação de pessoal especializado seja feita por meio do estímulo à organização de cursos e de eventos sobre boas práticas com animais. Somente com envolvimento articulado e contínuo da comunidade científica estaremos realmente colocando em prática as premissas previstas na nova lei”, disse.

Agência FAPESP –

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