A relação milenar entre homens e bichos de estimação entrou numa nova fase.
Mais do que amigos, eles agora são como filhos. E a convivência pode ser tão
complicada quanto a dos pais com um adolescente temperamental.
A DAMA E O VIRA-LATA
Quando a atriz Daniele Suzuki adquiriu a dachshund Margarida, em 2005, sua mãe lhe deu um ultimato. "Ela queria que eu desistisse da ideia. Então, decidi que era hora de morar sozinha", diz. Hoje, Daniele também acolhe Pimenta, filha de Margarida. E, ainda, Tatuí - resgatado de uma ninhada de vira-latas que encontrou numa praia carioca. "A adoção foi uma bênção. Os três vivem em harmonia", diz Daniele.
Iniciada entre 25 000 e 50 000 anos atrás, a relação entre homens e bichos domesticados teve, a princípio, fins essencialmente utilitários. Cães vigiavam aldeias, ajudavam a caçar e pastorear. Gatos eram bem-vindos por exterminar ratos e outras pragas. Provavelmente a afeição, desde cedo, teve um papel nesse relacionamento. O primeiro indício concreto de um elo de emoção entre um humano e um animal data de 12 000 anos: são restos fossilizados de uma mulher abraçada a um filhote de cão, encontrados no Oriente Médio. O certo é que o afeto remodelou, ao longo dos séculos, os laços que nos ligam a cães e gatos. E continua a remodelá-los. É o que revelam pesquisas de comportamento ao mostrar que, mais até do que amigos, os bichos de estimação são hoje vistos como filhos ou irmãos em boa parte dos lares que os acolhem. Na Europa e nos Estados Unidos, o porcentual de donos que consideram seus bichos como familiares já chega a 30% (veja o teste). No Brasil, de acordo com pesquisas da multinacional francesa Evialis, uma das maiores fabricantes de alimentos para animais de estimação no mundo, esse índice é de 10% - mas aponta para cima.
Como todas as relações ancoradas na emoção, essa não é imune a crises. Os donos muitas vezes não sabem impor os devidos limites ao comportamento de seus companheiros de quatro patas - e o drama ganha cores semelhantes ao dos pais que enfrentam adolescentes revoltosos. Em meio à crescente indústria de produtos e serviços para bichos, emergiu até mesmo uma nova categoria profissional - a dos psicólogos de animais, adestradores especializados em lidar com cães e gatos neuróticos. Não, a neurose não é uma exclusividade humana. "Pessoas que aboliram a simplicidade de sua vida procuram, por meio de seus cães, reencontrá-la", diz o mais famoso desses adestradores, o mexicano Cesar Millan. "Elas precisam, no entanto, se educar para isso."
COMPANHIA DE BOLSO
Baby, yorkshire de 9 anos, é a companheira de todas as horas da jogadora de vôlei Virna. "Decidi adotá-la porque, com tantas viagens, não tinha tempo para um segundo filho. Mais tarde, ela me ajudou a superar uma separação", diz. Virna carrega a cadela - uma toy de 3 quilos - até para locais onde bichos são proibidos. "Para entrar no cinema, fecho a Baby na bolsa e peço que fique quietinha", conta
Das pinturas rupestres aos ratos e cachorros antropomórficos de Walt Disney, os animais são vistos com um misto de estranhamento e familiaridade. Nas fábulas mais tradicionais, são espelhos das qualidades e defeitos morais do homem. Mas a literatura também já os representou como forças indomáveis e irredutíveis da natureza
No século XIX, a teoria da evolução de Darwin desbancou o homem do ápice da criação para reposicioná-lo como apenas mais um dos animais moldados pela seleção natural. Essa revisão tem implicações éticas radicais. O filósofo australiano Peter Singer defende a igualdade plena de direitos entre homens e animais. Para ele, o "especismo" - a ideia de que os humanos são superiores aos demais seres - é uma forma de discriminação tão insustentável quanto o racismo. De certo modo, gatos e cachorros já galgaram um lugar privilegiado nas considerações morais das pessoas. A morte de um bicho querido começa a ser cercada de cerimônia: o Pet Memorial, cemitério de animais na Grande São Paulo, realiza em média trinta velórios e 200 cremações por mês, com custos que vão de 700 a 2 000 reais. Para muitos, a perda de um animal leva a uma situação de luto tão difícil de superar quanto a morte de um parente ou amigo.
O Brasil tem 32 milhões de cães e 16 milhões de gatos, de acordo com a Associação Nacional dos Fabricantes de Alimentos para Animais de Estimação, a Anfal Pet. Acredita-se que seja a segunda maior população desses bichos no planeta, inferior apenas à existente nos Estados Unidos. Em 2008, esses animais devoraram 1,8 milhão de toneladas de ração: 1,6 milhão de comida para cães e 200 000 toneladas de ração felina. Ainda segundo a Anfal Pet, existem cerca de 40 000 pet shops espalhadas pelo país. Em proporção à população de cães e gatos, esse número é um assombro. Significa que há um desses estabelecimentos para cada 1 200 bichos - contra uma farmácia para cada 2 600 pessoas no Brasil. Os donos mais afetivos são cada vez mais numerosos, no Brasil e no mundo. Em Nova York ou Paris, é comum ver senhoras empurrando seus cães em carrinhos, como bebês. Nos Estados Unidos, ainda, acaba de entrar em atividade a Pet Airways, companhia de viagens aéreas para bichos. No Brasil, o mercado de produtos e serviços para animais de estimação movimenta 9 bilhões de reais por ano.
A Radar Pet - uma pesquisa recém-concluída com 1 307 pessoas de oito metrópoles, idealizada por uma entidade do setor, a Comissão Animais de Companhia (Comac) - fornece uma visão da intimidade dos brasileiros com seus cães e gatos. Eles estão presentes em 44% dos lares das classes A, B e C - e em lugares como Porto Alegre, Curitiba e Campinas já figuram em mais de metade das casas. O novo status que cães e gatos estão assumindo nos lares tem pelo menos duas razões sociais distintas. A primeira diz respeito ao encolhimento das famílias. Hoje são raros os casais que optam por ter mais de um ou dois filhos - o terceiro, que costuma desembarcar em casa quando esses já estão mais crescidos, é quase sempre um cão ou gato. Como demonstra o Radar Pet, as famílias em que os filhos adolescentes ou adultos ainda moram com os pais são aquelas em que a presença dos bichos é mais forte. O segundo fator é o crescimento do contingente de pessoas que vivem sozinhas nas grandes cidades e buscam um companheiro animal. Cães e gatos têm chances menores de obter abrigo nos lares formados por casais com filhos pequenos. "Nessa fase, as crianças monopolizam as atenções. Não sobra tempo para os animais", diz o executivo Luiz Luccas, presidente da Comac.
PLANTÃO VETERINÁRIO - Em junho, a zootecnista paulista Fernanda Manelli passou por um susto. Lana, sua bernese de 3 anos, quase morreu em razão de uma castração malfeita. A cadela foi salva graças aos novos recursos da medicina veterinária. Ao se constatar, por uma tomografia computadorizada, que um abscesso já comprometia vários órgãos, ela foi operada às pressas. "Gastei 3 000 reais. Mas a vida da Lana não tem preço", diz.
As mesmas contingências da vida contemporânea que levam as pessoas a buscar uma proximidade maior com os animais também agravam os problemas da convivência. "A rotina maluca faz com que muitos donos não consigam lhes devotar o devido tempo e atenção", diz o especialista em comportamento animal César Ades. Em casos extremos, os cães se tornam agressivos ou depressivos. Os mais angustiados pela ausência do dono partem até para a automutilação. A preocupação exacerbada com a saúde é outro desdobramento da humanização dos bichos, que contam hoje com recursos médicos avançados, como exames de ressonância magnética e tomografia computadorizada. Plásticas com fins unicamente estéticos são proibidas pelos conselhos de veterinária, mas algumas clínicas oferecem intervenções para melhorar a aparência de um bicho afetado por um acidente ou derrame. "O tratamento de uma doença crônica custa por volta de 8 000 reais", informa Mário Marcondes, diretor do Hospital Veterinário Sena Madureira, o maior de São Paulo.
O domador Cesar Millan acusa a perda da "simplicidade instintiva" que regia a relação entre homem e cão nos primórdios da domesticação. Os especialistas têm por certo que os lobos dos quais os cachorros atuais descendem rodeavam os acampamentos humanos atraídos pelos restos de alimentos - mas daí à sua domesticação há um salto que ainda não se explicou satisfatoriamente. "Os cães demonstraram grande capacidade de assimilar nosso estilo de vida. Isso talvez explique por que a evolução nos fez tão amigos deles, e não de outros primatas, o que à primeira vista talvez parecesse mais lógico", diz Barbara Smuts, da Universidade Harvard. Os gatos também se adaptaram à vida na companhia das pessoas, mas nunca abriram mão da independência e do instinto de caçadores.
NEUROSE CANINA
O labrador DJ, de 3 anos e meio, é um triste exemplo de cão neurótico. Há um ano, começou a se automutilar sempre que ficava só. A dona, a economista carioca Victoria Costa Pires, já tentou de tudo: dermatologistas, psicólogos, florais de Bach. O bicho não parou de se machucar nem com o uso de um protetor. "Agora, vou tentar um tratamento à base de óleo de carro queimado", diz Victoria. Pobre DJ.
A principal forma de comunicação entre o homem e os cães é a linguagem corporal - cães são exímios leitores de gestos e expressões faciais. Nem por isso são surdos à linguagem verbal. Inventor de um famoso ranking de inteligência das raças caninas, o pesquisador americano Stanley Coren averiguou que os lulus mais espertos são capazes de agir em resposta a até 165 palavras simples - mesmo número de vocábulos dominado por uma criança de 2 anos. Um experimento brasileiro é uma demonstração impressionante da capacidade dos cães de associar palavras e símbolos a determinados objetos e ações. Conduzido por César Ades e pelo zootecnista e adestrador Alexandre Rossi, o estudo tem como estrela Sofia, uma vira-lata que aprendeu a acionar um teclado com opções de imagens para expressar seus desejos, como comer ração ou dar um passeio. De outro lado, os cães, mesmo investidos da condição privilegiada de integrantes da família, ainda são mal compreendidos pelos humanos. O balanço de rabo, universalmente entendido como sinal de alegria, não significa exatamente isso. A tradução sugerida pelo pesquisador Stanley Coren é a seguinte: "Aceito ser submisso a você, mas espero ganhar algo em troca".
Cães são programados para seguir um líder de matilha - e para, ao menor sinal de fraqueza do líder, se impor. Esse traço da personalidade canina é a matéria-prima dos programas televisivos de adestramento. Com seu impressionante domínio da linguagem corporal dos animais, Cesar Millan doma até os mais renhidos pit bulls. Esse tipo de enfrentamento direto, contudo, já suscitou críticas - inclusive de entidades de defesa dos animais. Alguns profissionais dizem que os métodos de Millan são antiquados ao enfatizar a punição do cão indisciplinado. A tendência preponderante hoje é o chamado adestramento positivo, em que se obtém a obediência por meio de recompensas, como comida. Seja ela reforçada por meios punitivos ou positivos, a disciplina dos bichos tornou-se uma questão urgente dentro dos lares. Tanto quanto as crianças, eles precisam de limites. Os direitos humanos dos animais devem ter sua contrapartida. Não é possível ter a mesma atitude do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, um dos luminares do século XVIII. Ele, que abandonou cinco filhos, nutria adoração genuína por seu cachorro, Sultan. Para Rousseau, as almas despóticas não toleravam gatos porque o gato é livre e não aceita ser escravo. Quanto a Sultan, ele escreveu: "Meu cachorro era meu amigo, não meu escravo: sempre tínhamos a mesma vontade, mas não porque ele me obedecesse". Entusiasta do mito do bom selvagem, Rousseau era mesmo um romântico.
Com reportagem de Bruno Meier e Carol Vaisman
Fonte:Veja
Nenhum comentário:
Postar um comentário