domingo, 17 de maio de 2015

Uma viagem ao Banhado do Maçarico, mais nova Reserva Biológica do RS

BR-471, saindo de Rio Grande em direção ao Chuí. Uma placa diz Santa Izabel à direita. Entre à esquerda. Na direção do oceano, é hora de enfrentar uma estrada vicinal. Siga os cataventos, lá longe. Alguns quilômetros adiante, o caminho cortará um manto verde, de capim bem alto. Muito prazer, Banhado do Maçarico.
Então este monte de mato a perder de vista é a tal da última Unidade de Conservação (UC) decretada no Estado? É uma primeira pergunta a se esperar do senso comum. Sem o conhecimento da biodiversidade daquele naco de pampa, parece mesmo apenas um sem fim de verde inundado – bichos raros não se mostram muito.

Entenda como nasce uma Unidade de Conservação

Criada no final de 2014, a Reserva Biológica do Banhado do Maçarico é a 23ª UC do Rio Grande do Sul – a última havia surgido em 2005. Já se sabia há bastante tempo do valor da área para a natureza, mas foi a partir de 2007 que ambientalistas passaram a reivindicar a sua proteção – para salvar cinco espécies ameaçadas de extinção e garantir o seu papel hídrico. Naquele ano, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) enviou técnicos para uma avaliação.


Em 2008, a ONG inglesa Birdlife International identificou o local como uma Important Bird Area (área importante para aves). É um conceito baseado na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza. A partir de critérios científicos, a ONG analisa regiões que contam com populações de espécies ameaçadas, para identificar locais que deveriam receber investimentos em preservação. A escolha pelas aves está na facilidade de cadastrá-las, já que se expõem, cantam, voam. Mas a intenção da classificação é alertar para a biodiversidade como um todo – se é importante para elas, geralmente vale o mesmo para todos os outros animais, como é o caso no Maçarico.
Pouco mais de 2% do pampa tem proteção ambiental
– Essas áreas úmidas são ambientes jovens do ponto de vista geológico. Por serem jovens, são mais suscetíveis a perturbações. Ambientes antigos têm mais resistência. Se há fogo ou desmatamento, por exemplo, reerguem-se mais facilmente. Em ambientes mais novos, é mais fácil de romper, daí a importância de conservar – explica Luís Fernando Perelló, biólogo que era diretor-geral da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema) à época do decreto e que hoje atua na Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam).

Ameaçado, Pampa abriga biodiversidade para floresta nenhuma botar defeito
O Pampa é o bioma brasileiro mais longe de alcançar as Metas de Aichi, estabelecidas na 10ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, no Japão, em 2010. Entre os objetivos acertados pelos países, está a proteção em Unidades de Conservação de 17% da superfície de cada bioma terrestre até 2020 – no Brasil, são seis: Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal. Pouco mais de 2% de pampa é amparado por UCs (somando os níveis federal, estadual e municipal). No Brasil, só a Amazônia supera a meta, com 26,6%.
– A Convenção da Biodiversidade inseria-se em um contexto no qual se buscava mais áreas florestais. Não se olhava muito para o Cerrado, a Caatinga, o Pampa. Esses biomas ficaram muito aquém de ações em prol da conservação. Agora, o olhar está se voltando para quem está mais preterido – afirma Rafael Erling, chefe da Divisão de Unidades de Conservação da Sema.    

Casa de cinco aves ameaçadas de extinção


A Reserva Biológica do Banhado do Maçarico existe quase por acaso. Essa história começou em 2012, quando a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) dispensou a realização de Estudo Prévio de Impacto Ambiental para o complexo eólico Corredor de Senandes, da Odebrecht, que fica a apenas alguns quilômetros de onde hoje é a reserva. A obra estava quase finalizada, em 2014, quando o Ministério Público Estadual (MP) entrou com uma ação civil pública contra a empresa e a Fepam.


Na avaliação do MP, a falta do estudo resultou na instalação de equipamentos em locais indevidos e modificações que interfeririam nos cursos d’água e banhados – como é coberta por muita vegetação, fica difícil imaginar que aquela zona alagadiça, que tem um solo tipo turfeira (pouca água exposta e muita matéria orgânica acumulada), guarde um lençol freático que alimenta arroios ao norte e ao sul, o que influi, inclusive, nas águas da Estação Ecológica do Taim. Além disso, apesar do tamanho do empreendimento, não foi exigida compensação ambiental.
Não se sabe ao certo qual espécie de maçarico deu nome ao banhado  em Rio Grande. Mas três vivem por lá: o maçarico-real, o maçarico-de-cara-pelada e o maçarico-preto (na foto) - Foto: Lauro Alves

Houve, então, uma aproximação entre as partes para tentar mitigar os danos. A Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema) decidiu reconhecer 6.253 hectares do Banhado do Maçarico como Unidade de Conservação (UC) e, após um Termo de Ajustamento de Conduta, a Odebrecht comprometeu-se a destinar 0,6% (R$ 2,4 milhões) do custo do empreendimento à UC. Este valor pagará o levantamento fundiário (estudo técnico para identificar quais propriedades estão na reserva e de quem são), o plano de manejo (que define o que pode e o que não pode ser feito lá) e parte das indenizações aos donos da terras (o Estado é obrigado a comprar as propriedades dentro da demarcação).
Cientistas encontram 57 espécies diferentes em 1 m² no Pampa
Cinco espécies de aves são as principais motivadoras para que o ecossistema fosse resguardado. Uma delas é o macuquinho-da-várzea, pássaro ameaçado em todas as esferas e que ocorre apenas em um pequeno pedaço do banhado. É de uma família originária dos Andes e veio parar na Mata Atlântica há milhares de anos, para depois se adaptar ao pampa alagado. Entremeado na densa vegetação, voa pouco e dificilmente é visto – fotos dele são como prêmios para entusiastas da observação de pássaros, um público que pode virar fonte de renda para os donos das terras vizinhas à unidade. Hoje, mesmo sem qualquer estrutura, eles já chegam de diversas partes do mundo para “passarinhar”, hospedando-se em Rio Grande.
– A biodiversidade do Banhado do Maçarico é extremamente alta. Vislumbramos a sua preservação há muito tempo – diz Rafael Dias, biólogo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

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Ele e o colega Giovanni Maurício, também professor da UFPel, conhecem a região desde a década de 1990 (“desbravamos no amor e na raça esses banhados”, conta Maurício). Por isso, foram chamados pela Sema para contribuir na construção do texto que justifica a criação da reserva biológica. Esta categoria de UC propõe a conservação de espécies ameaçadas e é instituída por decreto, sem consulta pública, e não permite visitação, a não ser de pesquisadores.
– O fato de a comunidade não ter oportunidade de se manifestar causa um desgaste junto aos proprietários – aponta Maurício.

Entenda a importância do banhado para a biodiversidade

O Banhado do Maçarico é uma das faixas alagadas dos chamados cordões litorâneos. Estes cordões se formaram durante a última transgressão oceânica, há 5 mil anos. Isto é, o Oceano Atlântico inundou o continente e, ao regredir, deixou áreas alagadas. Por isso, a paisagem desta região costeira de pampa é caracterizada por linhas de banhado e terreno seco 
intercalados.
O mais distante do oceano, o Maçarico é o mais antigo dessses banhados. A vegetação e as espécies de aves são diferentes das dos outros, pois tiveram mais tempo para se consolidar. O Maçarico é um banhado do tipo turfeira, com pouca água exposta e muita matéria orgânica acumulada. Tem múltiplas saídas: para norte, alimenta o sistema de arroios que drenam para o estuário da laguna dos Patos e, para sul, alimenta o Arroio da Estiva, que drena para o banhado do Taim.
O limite oeste da Unidade de Conservação são campos e dunas, que ficam junto ao banhado. Elas funcionam como uma barreira para os ecossistemas aquáticos. Nessas dunas, ficava o limite do continente com o oceano (a praia) há milhares de anos. É uma fronteira que o mar não ultrapassou na última transgressão oceânica.

Litígios são comuns nas unidades de conservação
Antes das usinas de energia eólica, o uso dado aos campos da região não tinha grande impacto no ecossistema. Os proprietários das terras são, na maioria, pecuaristas, e a atividade não interfere tanto na vida de muitos dos 200 tipos de aves da reserva.
A demarcação proposta pelos técnicos, segundo a Sema, evitou incluir as sedes das fazendas, e adicionou áreas alagadas que seriam indesejadas. Mas a obrigação de vender parte das propriedades incomoda alguns fazendeiros. Alguns afirmam que terão seus empreendimentos inviabilizados.
– Nós reivindicamos que seja feito o que o próprio ICMbio propunha para a região, que era um Refúgio da Vida Silvestre, que não tem característica tão restritiva (permite áreas privadas, se compatíveis) – diz Luiz Renato Leite Reis, do Sindicato Rural de Rio Grande.
A situação de litígio é comum nas áreas decretadas para preservação, segundo Rafael Erling, chefe da Divisão de Unidades de Conservação da Sema. Mas, como o plano de manejo leva de dois a três anos para ser concluído, alterações solicitadas pela comunidade podem ser acolhidas:
– Podemos fazer adequações no perímetro da unidade, caso alguma área não seja considerada relevante para a conservação.http://zh.rbsdirect.com.br/imagesrc/17403944.jpg?w=640
Caminheiro-grande (Anthus nattereri)
É um típico passarinho de campo. No Brasil, ocorre de Minas Gerais a São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, mas é raro e com distribuição pontual. Também habita regiões limítrofes do Paraguai, Argentina e Uruguai. Caminha no solo em campos com uma mistura de capim baixo e touceiras de ervas mais altas. Come insetos e outros animaizinhos. Ergue-se no ar a uns 25m de altura para cantar, descendo pouco depois com os pés pendentes e proferindo uma série de zumbidos característicos. É ameaçado pela destruição dos campos para darem lugar a lavouras de grãos e plantios de pinus e eucalipto. Ocorre em campos secos na borda oeste do Banhado do Maçarico.
Nível de ameaça: Vulnerável (global, nacional, estadual)
Caboclinho-de-papo-branco (Sporophila palustris)
Passarinho campestre migratório, de bela plumagem e canto agradável, e que reproduz no Sul e Oeste do Rio Grande do Sul, Uruguai e regiões adjacentes da Argentina. Tem na região dos cordões litorâneos uma das maiores populações reprodutivas conhecidas. Ocorre entre novembro e março no Banhado do Maçarico. No final do verão, migra para os campos da região do cerrado, onde passa o período não-reprodutivo. É ameaçado de extinção pelo redução de capinzais em função da pecuária, pela destruição dos campos para dar lugar a lavouras de soja, milho, plantações de pinus e eucalipto, e também pela captura ilegal para abastecer o comércio de aves de gaiola. 
Gavião-cinza (Circus cinereus)
Um gavião de médio porte, com cerca de 40 centímetros. Vive do sul do Brasil à Terra do Fogo e região andina. Alimenta-se principalmente de pequenos pássaros, complementando a dieta com roedores, répteis e insetos. Caça em voo baixo, oscilando o corpo lateralmente ao vento. Come a presa no solo, escondido entre a vegetação. Busca seu alimento em áreas abertas, como campos, banhados e lavouras, mas forma ninhos principalmente em meio a densas palhas dos banhados de turfa. A população que habita os cordões litorâneos é provavelmente a maior do Brasil. É ameaçado pela destruição dos banhados e também pela construção de empreendimentos eólicos em áreas de banhado. 
Noivinha-de-rabo-preto (Xolmis dominicana)
Bela ave campestre alvinegra, ameaçada de extinção pela destruição dos campos por lavouras de grãos e pelo plantio de pínus e eucalipto. Vive no sul do Brasil, Uruguai e áreas próximas do Paraguai e Argentina. É geralmente vista aos casais, que pousam em ervas baixas de onde decolam atrás de insetos no solo. Caça no campo, mas dorme e faz ninhos em banhados densos de gravatás e palhas. A população da região dos cordões litorâneos rivaliza com a dos Campos de Cima da Serra como as maiores do Brasil.
Macuquinho-da-várzea (Scytalopus iraiensis)
Espécie pertencente a um grupo de aves florestais de origem andina, que, por conta de antigos movimentos geológicos e mudanças climáticas, conseguiu colonizar o sudeste do Brasil. É a única espécie do gênero que ocorre em banhados. No Rio Grande do Sul, pode ser encontrado apenas no Banhado do Maçarico, no Banhado dos Pachecos, em Viamão, e em algumas localidades do Campos de Cima da Serra. Vive dentro da vegetação fechada de banhados de turfa, onde se formam tramas densas, dificultando o acesso dos predadores e, mesmo, de pesquisadores. É ameaçado pela drenagem, aterro e barramento de seu habitat.
Fonte:

ZH visita a mais nova reserva biológica do Estado, um “sem fim de verde inundado” em Rio Grande




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