segunda-feira, 20 de abril de 2009

Mudanças no controle da leishmaniose visceral no Brasil

INFORME TÉCNICO
Depois de duas décadas de tentativas de controle da leishmaniose visceral (LV) no Brasil, o número de casos no país aumentou nitidamente e invadiu áreas urbanas, onde encontrou-se com a AIDS 27.


A recente proposta do Ministério da Saúde de reavaliar os programas de controle de endemias, aliada ao reconhecimento da pouca eficiência do programa brasileiro para LV, levou à convocação de um comitê de consultores para analisar o programa atual e propor mudanças para o controle da doença no país. Foram realizadas algumas reuniões do grupo técnico, a última tendo ocorrido em 4 de dezembro de 2000 em Brasília. Esta reunião contou com a presença dos consultores da Ministerio da Saúde e Técnico da Fundação Nacional de Saúde: Almério de Castro Gomes (Universidade de São Paulo), Carlos Henrique Nery Costa ( Universidade Federal do Piauí), Jackson Mauricio Lopes Costa (Universidade Federal do Maranhão), João Batista Furtado Vieira (Fundação Nacional de Saúde), José Wellington de Oliveira Lima (Fundação Nacional de Saúde) e Reinaldo Dietze (Universidade Federal do Espírito Santo). Em fevereiro de 2001, as modificações propostas foram apresentadas para os representantes das secretarias Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical
34(2): 223-228, mar-abr, 2001.
estaduais de saúde e das coordenações regionais da Fundação Nacional de Saúde, para implementação.
O programa brasileiro, iniciado há mais de 40 anos, é composto pela integração de três medidas de saúde pública: a distribuição gratuita do tratamento específico, o controle de reservatórios domésticos e o controle de vetores. A medicação distribuída nas unidades públicas de saúde onde se trata LV são compostos de antimônio pentavalente, com dose recomendada de 20mg/kg/dia por no mínimo 20 dias.
O controle de reservatórios tem sido feito através do diagnóstico sorológico de todos os cães domésticos onde existe transmissão de Leishmania chagasi para seres humanos. Para isto, foi estruturada uma rede de testes de imunofluorescência, utilizando-se eluato de papel de filtro; todos os cães com resultado reagente têm sido sacrificados. Finalmente, o controle do vetor, essencialmente para o flebótomo Lutzomyia longipalpis, é aplicado eventualmente com o uso de inseticidas, por aspersão espacial (principalmente) ou por aplicação residual 22 29.
A recente epidemia devastadora do Sudão, onde populações deslocadas pela guerra civil tinham pouco acesso à medicação para LV 31, deixou claro que a ampla distribuição gratuita do tratamento específico é crucial para a prevenção da morte, particularmente entre os mais pobres, contingente que constitui a maioria das vítimas de LV.
Salvo pequenas modificações, decorrentes de análises e experiências recentes, as recomendações anteriores para o tratamento específico foram ratificadas pelo comitê de consultores. Baseado em revisão dos esquemas utilizados até o presente, sugeriu-se passar a duração mínima de 20 dias para 30 dias 6. A excreção quase totalmente renal do antimônio pentavalente8 21 e ausência de tabela para uso em pacientes com insuficiência renal, a conhecida eliminação extra-renal da anfotericina B12 e o fato de seus níveis séricos não serem afetados na insuficiência renal5 (e apesar de sua nefrotoxicidade) levaram à indicação do uso, ainda que cauteloso, de anfotericina B como droga de escolha para pacientes com LV em insuficiência renal. A segurança do uso de anfotericina B na gestação33 34 e a falta de estudos conclusivos sobre a eratogenicidade de antimônio23, levaram à recomendação de indicação de anfotericina B na gestação. Foram consideradas medidas de segurança a dosagem de creatinina do soro antes do início do tratamento e o acompanhamento eletrocardiográfico de pessoas mais velhas ou com cardiopatias.
O programa de eliminação de cães domésticos apresenta o menor suporte técnico-científico entre as 3 estratégias do programa de controle. Foram identificados 10 pontos de maior fragilidade:
1) A falta de correlação espacial entre a incidência cumulativa de LV humana com a soroprevalência canina26.
2) A ausência de risco significativo de coabitação com cães para aquisição de LV 10.
3) A demonstração teórica de que é um método pouco eficiente em comparação com as estratégias de controle vetorial e de suplementação alimentar15 30.
4) A demonstração de que outros reservatórios podem ser fontes de infecção de L. chagasi, tais como pessoas (particularmente crianças desnutridas que podem transmitir para outras crianças)11, canídeos silvestres13 e marsupiais32.
5) A grande velocidade com que a população canina é reposta, exigindo proporção e freqüência de retiradas de cães soropositivos impraticáveis7.
6) A baixa eficiência dos testes sorológicos em detectar infecção canina16.
7) A utilização de um único método para efetuar as duas funções de teste de triagem e de teste confirmatório para infecção por L. chagasi; isto conduz a elevado custo por benefício devido à alta proporção de resultados falso-positivos, particularmente quando a prevalência real é baixa18 35. 8) A falta de indicadores clínicos ou laboratoriais de infectividade de cães para o vetor 28.
9) A ausência de experiências anteriores que tenham demonstrado vantagens exclusivas da eliminação de cães, pois todos os relatos de sucesso de programas de controle de LV onde foram eliminados cães descrevem também o controle de vetores com inseticidas1 24 25.
10) A publicação de observações e ensaios em que se verificou que quando esta medida foi aplicada sozinha, não houve demonstração inequívoca da vantagem de seu uso em reduzir a
incidência de LV em seres humanos 3 14 17.
Os consultores recomendaram então que a triagem sorológica universal sistemática de todos os cães seguida de eliminação deve ser suspensa. Sugeriram que, na ausência do vetor ou de casos humanos, as únicas medidas para as áreas com leishmaniose visceral canina devem ser de vigilância e de educação em saúde. Devem ser promovidos inquéritos sorológicos amostrais contingenciais de infecção canina e a intensificação da identificação de vetores. Indicaram a necessidade de formulação de programa de educação sobre a doença para o pessoal de saúde no sentido de alertar para o diagnóstico em seres humanos, e outro programa educativo, voltado para médicos-veterinários, com a recomendação de não tratarem cães doentes com as drogas disponíveis, tanto pela ineficiência como medida de saúde pública devido à infectividade para flebótomos de cães tratados como pelo risco de desenvolvimento de resistência à medicação a longo prazo2. Foi recomendado também que a população seja alertada para solicitar às unidades de controle de zoonoses o exame de seus cães com sintomatologia suspeita. Foi indicado que o teste sorológico de eluato de sangue em papel de filtro deva ser substituído por sorologia convencional. O comitê acha que a eliminação de cães deve ser restrita apenas para as situações em que o diagnóstico de leishmaniose visceral for confirmado parasitologicamente ou que exames sorológicos confirmem casos clinicamente suspeitos, em cães procedentes de áreas endêmicas.
Fundamentado em numerosos relatos e ensaios de bons resultados no controle de LV onde houve aplicação de inseticidas para o controle de LV, antroponótico ou não, ou de outras doenças transmitidas por vetores, tais como malária e doença de Chagas1 9 19 20, os consultores enfatizaram que a prioridade do programa de controle da transmissão deve ser dada para o controle de vetores, em vez da atual ênfase conferida ao controle de reservatórios. O comitê sugeriu a distinção entre as circunstâncias em que o uso de inseticidas está formalmente indicado das situações em que medidas mais conservadoras devem ser tomadas. Recomendou que a aplicação de inseticidas só pode ser efetivada quando houver registro de casos humanos na área. Mesmo na presença de casos humanos, o comitê só recomendou o controle de vetores para as áreas onde pelo uma das três seguintes situações estiver presente em uma área limitada: 1) Introdução recente da doença. 2) Aumento nítido da incidência. 3) Incidência cumulativa maior que 5 casos por 100.000 habitantes por ano. Quando nenhuma das características acima estiver presente, o comitê recomendou que apenas se intensifique a tentativa de identificação de casos humanos adicionais na área (buscando justificativa adicional para uso eventual de inseticidas), o treinamento de profissionais de saúde para assegurar o reconhecimento da doença e a ampliação da procura do vetor para as áreas vizinhas. Ressaltou que a aplicação de inseticidas deve-se restringir a aplicações residuais, com cobertura extensiva de todo o domicílio e seus anexos.
O comitê enfatizou os resultados de um estudo de coorte que havia identificado um maior risco de crianças desnutridas infectadas por L. chagasi desenvolverem os sintomas de LV 4. Mesmo ciente que esta associação não foi confirmada em dois outros estudos de coorte16 29, (talvez decorrente de erro tipo II 16, ou da carência de algum nutriente de efeito ainda desconhecido na LV, ausente em uma área mas presente nas outras) classificou o fator de risco como relevante e passível de intervenção. Por isto, recomendou que o programa de controle de leishmaniose visceral se articule com os programas de assistência nutricional, a fim de priorizar suplementação alimentar às crianças de alto risco de infecção por L. chagasi.
O comitê de assessores reconheceu que muitos pontos da epidemiologia e profilaxia da LV não estão ainda devidamente esclarecidos, o que dificultou a escolha das melhores recomendações. Por isto, sugere que o Ministério da Saúde e agências oficiais de fomento à pesquisa devam encomendar pesquisas à comunidade científica sobre a epidemiologia e o controle da LV. Chama especial atenção para tópicos relevantes tais como: quais são de fato as principais fontes de L. chagasi para populações humanas; testes diagnósticos que identifiquem a infectividade de cães para Lu. longipalpis; e a análise de estratégias para o uso de inseticidas mais efetivas e menos danosas.
O comitê entende que existem recomendações com alguma imprecisão mas acredita que possam
ser mais adequadamente especificadas através de decisões tomadas localmente, de acordo com as peculiaridades regionais. Finalmente, o comitê acredita que as modificações propostas resultarão em aplicação mais racional e eficiente dos recursos destinados ao controle desta endemia.


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